Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (Fim): Prisão e tortura pela PIDE em 1967, libertação no tempo de Spínola em 1968, refúgio em Portugal em 1973 e regresso ao país depois do 25 de Abril de 1974.
o empresário e nacionalista Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai, pai do antigo 1º Ministro da Guiné-Bissau, Carlos Gomes Júnior, também conhecido por Cadogo Júnior, nascido em Bolama.
Luís Graça & Camaradas da Guiné
Memórias de Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai)
Beja Santos
Cadogo Pai resolveu passar a escrito as suas memórias. Nascido em 1929, começou como paquete no escritório da família Barbosa, junto do Grande Hotel. Com ambições e desejoso de outro futuro, foi trabalhar na SCOA (proprietária do edifício onde está instalada a Pensão Central), foi depois transferido para Bolama e mais tarde regressou a Bissau como chefe de loja, voltando de novo a Bolama em 1951. Diz ter sido em Bolama que conheceu Aristides Pereira, formou-se um grupo de que faziam também parte Adelino Gomes, Alfredo Fortes, Barcelos de Lima e Alcibíades Tolentino.
Recorda os primeiros contactos com Amílcar Cabral e as personalidades daqueles que pretenderam pôr de pé a Associação Recreativa Cultural e Desportiva, desde os professores Adriano Pires, José Moreira e Pio Mendonça, os advogados Jorge Tavares e Sousa e Artur Augusto Silva, destacando a mulher deste, Clara Schwarz, que ele trata como a mãe dos estudantes, até o médico Ciro de Andrade que ele trata por médico dos reclusos. A associação foi proibida, os nacionalistas voltaram-se para o futebol. Considera que na época (anos 1950) as autoridades portuguesas teriam acirrado as rivalidades entre guineenses e cabo-verdianos, dando a estes bons empregos e melhores salários.
Os encontros clandestinos ocorriam no quarto de Elisée Turpin e mais tarde na messe do BNU. E presta mais esclarecimentos: “A primeira reunião de Amílcar Cabral com guineenses e cabo-verdianos realizou-se na antiga granja de Pessubé, estava acompanhado do seu fiel companheiro Bacar Cassamá”. Em Setembro de 1955, Cadogo estabeleceu-se por conta própria. Dá como seguro a realização da fundação do PAIGC a 19 de Setembro de 1956, numa moradia da rua Severino Gomes de Pina, tendo estado presentes Amílcar Cabral, Luís Cabral, Aristides Pereira, Fernando Fortes, Inácio Júlio Semedo e Elisée Turpin: “O documento elaborado tinha 8 artigos, o terceiro dizia que o partido trabalhava no sentido de unir todos os africanos de todas as etnias e de todas as camadas sociais, constava da primeira edição do jornal Nô Pintcha, artigo que mandei publicar, citei o artigo mencionado, para esclarecer desde quando tinha ligações com o PAIGC, isto quando o Luís Cabral tentou impedir a minha candidatura às primeiras eleições legislativas realizadas em Bissau, após a independência. Esta declaração provocou interesse a Vasco Cabral que não me largou até eu lhe fornecer, e ao camarada Nino Vieira, o texto completo do documento”. Cadogo diz ter viajado para Portugal em Junho de 1960 porque corria enorme risco de ser preso, fora colocado na lista de suspeitos. Regressa a Bissau em Novembro desse ano, já havia notícias de prisões e mortes de presos em Tite. Recorda o reencontro com Aristides Pereira em Madina do Boé, na altura da comemoração do primeiro aniversário da independência.
Os contactos clandestinos prosseguiam em 1960, Cadogo desenvolvia a sua vida empresarial e refere mais nomes que se juntaram às reuniões, muitas vezes a coberto de jantares e festas: Armando Lobo de Pina, Domingos Maria Deybs, Aguinaldo Paquete. Dá-se então a prisão de Júlio Pereira, em Farim, a seguir a uma granada atirada a um ajuntamento numa festa de tambores em Farim: “Sovado que nem um animal e obrigado numa cela a lutar com um companheiro até à morte”. Embora vereador da Câmara Municipal de Bissau, Cadogo já é alvo de suspeitas. As pressões não pararam de crescer, pretendiam que ele fosse numa delegação a Lisboa numa manifestação de apoio a Salazar, recusou a missão. As prisões sucedem-se, António Carvalho veio dar-lhe a notícia da prisão de Pedro Pinto Pereira e de que a seguir ele estava na Lista. Mas quem foi preso foi João Vaz, isto perto do fim de ano de 1966. Cadogo e mais quatro foram presos em 17 de Janeiro de 1967, e brutalmente espancado. Pede a presença de um advogado, o alferes miliciano Biscaia Pereira e mais adiante escreve: “Os autores do inferno das prisões em Bissau, a começar por Guerra Ribeiro, tenente Castro e outros, começaram a ser afastados de Bissau (…) É altura de destacar a humanidade de certos elementos da PIDE que contribuíram para me salvar a vida, caso do chefe Figueiredo e do agente Silva. Destaco o comportamento do Dr. Biscaia Pereira, que fez tudo para a minha libertação, e o perigo que correu de vir a Bissau defender a minha causa, sem cobrar absolutamente nada. Razões porque, amainamos ódios, porque entre os maus vislumbrei rasgos de humanidade, de pessoas que cumpriam as missões que eram obrigados mas contra o regime colonial e torturas a que fomos sujeitos”.
Combalido, obtém do cardiologista Dr. Diaz um atestado para se deslocar com caráter de urgência a Portugal para fazer exames médicos. É nisto que ocorre o 25 de Abril de 1974. Em 1977, voltou a ser preso, por ter contestado as eleições então realizadas. Preso duas vezes em 1989 e enumera os dados do processo, pedindo a recuperação dos seus bens.
Não se sabe como estas memórias aparecem incluídas no simpósio internacional “Recordar Guileje”, que se realizou em Março de 2008. Trata-se de um documento que encontrei na Biblioteca da Liga dos Combatentes, obviamente um testemunho importante que nos faz pensar quantos outros se têm extraviado ou andarão esquecidos no pó das estantes. Interessava cruzar esta informação com muita outra (por exemplo, os testemunhos coligidos por Leopoldo Amado no livro que preparou sobre Aristides Pereira); não se fica a perceber como é que um membro do Conselho de Estado e galardoado com a medalha de Combatente da Liberdade da Pátria foi preso várias vezes depois da independência.
Dou comigo muitas vezes a pensar como é que os historiadores guineenses vão conseguir obter quadros históricos rigorosos, já nas próximas gerações, com tanta documentação malbaratada, tantos testemunhos inconclusivos e não sujeitos ao contraditório, isto para já não falar em documentos fundamentais que foram habilmente sonegados, caso do julgamento dos incriminados pelo assassinato de Amílcar Cabral, de que não resta um só testemunho escrito ou registo em bobine.
____________
Notas do editor
Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai) é membro da nossa Tabanca Grande e já viu publicadas as suas memórias nos postes de:
30 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6807: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (1): Encarregado de uma empresa francesa, em Bissau e depois Bolama (1946-1951)
2 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6815: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (2): A elite guineense nos anos 50
5 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6828: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (3): Estabelecido por conta própria em 1955
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/
Sem comentários:
Enviar um comentário