sexta-feira, 23 de outubro de 2015

PACHECO PEREIRA: "CAVACO SILVA FEZ UMA DECLARAÇÃO DE GUERRA A 2 MILHÕES E 700 MIL PORTUGUESES"

Em entrevista à Renascença, o social-democrata diz que "tudo aquilo que corra mal na economia portuguesa devido à instabilidade" passou a ser responsabilidade do Presidente e de Passos. Discurso de Cavaco está "no limite do legal" e une mais a esquerda.

Como é que vê a intervenção do Presidente da República (PR), que indigitou Pedro Passos Coelho e criticou a alternativa "inconsistente" da esquerda?
Acho absolutamente normal a decisão de indigitar Passos Coelho. Sempre o defendi. O que acho muito preocupante é tudo o resto que ele disse na sua intervenção. Está no limite do Constitucional e, portanto, no limite do legal. O que o PR fez foi dizer que uma parte importante dos portugueses não pode ter acesso ao poder político. Exclui partidos do livre jogo democrático. Ao fazer isso, só havia um passo seguinte a dar: ilegalizá-los, que no fundo é o conteúdo latente da intervenção do PR. Ou seja: esses partidos são menores, esses partidos não têm os mesmos direitos que os outros.
E que efeitos teve essa mensagem?
Isso teve, obviamente, um efeito contraproducente para as intenções do PR. Tornou praticamente impossível que os deputados do PS não apoiem a posição da direcção, gerou uma enorme indignação no PS, no BE e no PCP que torna mais fácil qualquer entendimento.
Ele fez uma declaração de guerra a 2 milhões e 700 mil portugueses que não votaram na coligação. Pior ainda: apesar de não o dizer com clareza, sugeriu que era impossível dar posse a um governo de esquerda. E ao fazer essa sugestão tem como implícito que deixará Passos Coelho num governo de gestão até poder haver eleições.
Que consequências resultam dessa decisão?
É uma solução completamente inaceitável, significa que tudo aquilo que corra mal na economia portuguesa devido à instabilidade passou a ser responsabilidade do PR e de Passos Coelho, caso ele aceite este tipo de posição. Porque a Assembleia da República (AR) tem legitimidade e isso significa que a AR, se por qualquer motivo impedir que haja um governo PSD/CDS, termina com a legitimidade que vem das eleições. O Governo não tem legitimidade para obrigar os outros partidos a votar nele. A partir do momento em que a Assembleia, através de uma moção, recuse esse governo, temos um conflito de legitimidades: a da Assembleia 'versus' a posição do PR e do Governo. E isso dá origem a uma enorme quantidade de conflitos.
E o que acontece a seguir?
O Governo está em gestão, ou seja, não pode tomar nenhuma decisão de fundo - e há várias decisões que têm que ser tomadas, até ao final do ano, por exemplo. O PR esqueceu-se que, se o Governo está em gestão, a Assembleia não está porque pode votar legislação.
Como é que ele vai fazer? Mete a legislação na gaveta? Manda para o Tribunal Constitucional? Atrasa a sua promulgação? Isso é quase que equivalente a um abuso e uma usurpação de poder.
Se o PR for coerente com as suas palavras, mantém Passos Coelho em gestão e não dá posse a um governo de esquerda. Ele não o diz com clareza, mas foi tão agressivo contra esses partidos - PS, BE e PCP - que ele próprio se limitou naquilo que pode decidir.
Toda esta situação é, em primeiro lugar, responsabilidade do PR. Devia ter antecipado as eleições e teria poderes que não tem hoje. Não as antecipou porque, na altura em que o podia fazer, as sondagens davam uma maioria considerável ao PS, ele quis manter o governo.
Estamos num enorme imbróglio, numa enorme crise, numa enorme radicalização... Ouvi hoje na rádio as opiniões dos ouvintes e eram opiniões de zanga, de fúria, de irritação. E isso é que é novo. Há uma parte importante dos portugueses que estão literalmente furiosos com o PR.
De alguma forma, Passos fica numa situação fragilizada. Os próximos meses poderão levar a novas eleições?
Poder pode, quando houver um novo Presidente em funções. Aliás, o PR também envenenou as próximas eleições presidenciais, que vão ser todas sobre se o [candidato a] Presidente dá ou não posse a um governo de maioria de esquerda. Não podemos entrar naquilo que se faz na Europa que é: há tantas eleições quantas forem necessárias até que o resultado que eu quero seja obtido nas urnas. Já aconteceu com os referendos na Europa. Não se pode repetir eleições sobre eleições até que dessas eleições saia uma maioria do PSD/CDS. Isso é que é uma condução do processo político facciosa.
Indigitar Passos Coelho parece-me bem, mas dizer o que ele disse a seguir é uma declaração de guerra a uma parte importante dos portugueses. E, evidentemente, isso é um factor de enorme instabilidade.
Houve uma radicalização…
O efeito de radicalização das palavras é que, imediatamente a seguir ao seu discurso, o PS anunciou a apresentação de uma moção, coisa que nunca tinha feito até então. E não tenho dúvida nenhuma que as negociações entre os partidos [de esquerda] correm muito melhor do que antes. Não tenho dúvida nenhuma que há quem queira contestar a posição do PS dentro do partido: ou o faz às escondidas ou através do voto secreto, que é uma atitude cobarde. Em público ninguém o vai fazer: ficam párias dentro do partido.
Foi uma intervenção contraproducente para os objectivos de Cavaco Silva?
Gerou exactamente os efeitos ao contrário do que pretendia. Gerou uma instabilidade que até agora não existia no plano económico e nos mercados. Os mercados estão informados dia-a-dia. Sabem há muito tempo que a probabilidade de haver um governo de esquerda é grande e que este Governo não tem condições para governar. Até agora não houve nenhuma manifestação de que os mercados estavam particularmente assustados, nem nos juros da dívida, nada. A partir de agora pode haver. E se houver a responsabilidade é do PR e de Passos Coelho, se Passos Coelho aceitar um governo de gestão.
Diminuiu o efeito de vitimização da coligação e passou esse efeito para o PS, o BE e o PCP.

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