terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Carnaval 2023: ESPECIALISTAS DEFENDEM A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CARNAVAL E PROFISSIONALIZAÇÃO DOS GRUPOS

Os especialistas guineenses na área cultural defenderam a institucionalização do carnaval e demais festividades bem como a profissionalização dos grupos culturais, de forma a elevar a performance do evento, permitindo que seja uma atração cultural para os países da sub-região, bem como a sua internacionalização.

Os especialistas foram convidados pelo semanário O Democrata para analisar a melhor forma de se manifestar o carnaval, contrariando o desvio da forma tradicional de se sair às ruas durante os festejos do carnaval e que se tornou objeto de crítica pela sociedade, bem como dos mecanismos necessários para a institucionalização daquele que é considerado o maior evento cultural da Guiné Bissau e defendem a sua internacionalização, particularmente para atrair a atenção dos países da sub-região.

Os peritos ouvidos são o antigo diretor-geral da Cultura, João Cornélio Gomes Correia, o arquiteto e pintor, Carlos Alberto Mendes Teixeira Barros e o coordenador do Grupo Cultural “Netos de Bandim”, Hector Diógenes Cassamá, defendem ainda um trabalho árduo para a profissionalização dos grupos culturais.

O Carnaval é uma festa popular tradicional realizada em diferentes locais do mundo. O termo “carnaval” deriva do latim “carnis levale”, que significa “retirar a carne” e suas origens remontam à Idade Média tem associação direta com o cristianismo.

“SETOR DA CULTURA VIVEU ANOS DE ANGÚSTIA NA GUINÉ-BISSAU” – JOÃO CORNÉLIO GOMES CORREIA
O especialista em assuntos culturais, João Cornélio Gomes Correia, afirmou que o setor da cultura viveu anos de angústia na Guiné-Bissau e que por isso o país não tem conseguido competir em pé de igualdade com outros países do mundo, por falta de legislação no domínio da cultura.

ʺTemos, desde de há muitos anos,documentos, projetos-lei e pacotes de leis engavetados. Até hoje não temos lei nacional sobre património cultural, e é por isso que as pessoas estão a destruir a cidade de Bissau velha, a fortaleza d’Amura, o Baluarte de Cacheu e estão a destruir tudo o que é bom para a geração vindouraʺ disse o antigo diretor geral da cultura.

João Cornélio defendeu que o governo olhe o carnaval como o expoente máximo da manifestação cultural do povo guineense, pois não se trata de manifestação de uma religião, lembrando que o carnaval da atualidade constitui um património de cada país que tem o hábito de manifestá-lo.

ʺPor exemplo, o carnaval de Brasil é o património cultural da humanidade. Nós temos que trabalhar na legislação e investigação para candidatarmo-nos. O nosso carnaval retrata a nossa vivência, hábitos, costumes, folclore e conjunto de valores humanos e culturais que merecem ser conhecidos mundialmenteʺ insistiu.

Neste particular, João Cornélio entende que asbarracas poderiam servir de meio para promover a gastronomia guineense, nomeadamente o caldo de mancara, caldo de chebeu, siga e poportada.

ʺMas hoje, as mulheres viram isto como uma fonte de rendimento e transformaram-nas numa economia criativa. É preciso que o governo tenha uma visão virada a promoção cultural e da nossa gastronomia. Não há um estatuto de carreira artística no país. Há muita coisa a fazer no setor da cultura. Não é que não sabem, os sucessivos governos não têm respondido aos apelos dos técnicos, por isso o setor está como está hojeʺ, afirmou.

João Cornélio defende que o governo avance com a regulamentação da lei de mecenato, que torne funcional o Instituto do carnaval e festividades, através da sua regulamentação, assim como criar o estatuto de careira artística no país.

ʺO trabalho que os Netos de Bandim fazem é altamente profissional, mas é preciso um estatuto. O Balet Nacional não tem um estatuto. É preciso que o governo pense num instrumento que balize o ingresso ao Balet porque, na minha opinião, deveriam ser os melhores de diferentes grupos culturais a ingressarem no Balet Nacionalʺ defendeu, para de seguida reconhecer que a dinâmica da sociedade e a mudança que se opera na sociedade implicam também intervenções e inovações nos domínios culturais.

Lembrou que, na época colonial, o carnaval tinha uma característica, além da sua espontaneidade que era linda. A forma rudimentar de construir máscaras, as pessoas iam ao mar para carregar lama, para a confeção das máscaras, Isso limitava a criatividade, porque era rosto da vaca (boca de baca – chamada Nturudu), e que as premiações eram atribuídas para incentivar a criatividade artística e não para dizer que uma cultura é superior a outra, ou seja, premiar para que as pessoas desenvolvam maior criatividade.

ʺO carnaval era uma manifestação cultural espontânea, não havia desfile, os grupos organizavam-se, tocavam e dançavam. Era uma forma de exteriorizar os sentimentos. Houve inovações na criatividade artística em domínios de arte plástica em 1980, com dragões, máscaras de grandes dimensões, de rosto de diferentes personalidades do país e do mundo, organização de desfiles, muita concorrência entre os bairros de Bissau. As regiões não vinham a Bissauʺ explicou, revelando que ʺsó a partir dos anos 97 e 98 é que se começou a organizar o carnaval a nível nacional com o intuito de promover a nossa diversidade cultural e trazer a luz a preservação do nosso rico património cultural e imaterial, isto quer dizer, as danças, os trajes, a música, as esculturas, máscaras naturais e todo o conjunto de valores e património cultural e imaterial da Guiné-Bissau, no sentido de salvaguardar esse património cultural e divulgá-lo para o mundoʺ.

Afirmou que entende as pessoas que dizem que o carnaval perdeu a sua essência. Mas, lembrou também que os momentos não são iguais.

GRUPO NETOS DE BANDIM: “É POSSÍVEL FAZER DA CULTURA UMA PORTA DE SAÍDA DA POBREZA”
Relativamente à iniciativa da internacionalização do Carnaval da Guiné-Bissau, o Coordenador do Grupo Cultural “Netos de Bandim”, Hector Diogenes Cassamá (Negado), disse que o país está no caminho certo sobre esta iniciativa, “porque o país já dispõe de uma carta da política nacional da Cultura e criou-se uma entidade estatal que se responsabiliza pela Cultura, que é a Secretaria de Estado da Cultura”.

“O que falta é traduzir todas essas teorias na prática, porque a carta por si só, é mais um documento que pode ser engavetado. Apesar de ser um documento que pode orientar-nos para o caminho a seguir para melhorar o setor da cultura, é preciso homens preparados e capazes para transformar toda essa teoria na prática” notou, para de seguida, afirmar que nos últimos anos tem-se registado uma degradação do setor cultural tanto do ponto de vista da criação, assim como em termos de espetáculos em grandes palcos, referindo-se a desorganização que se regista a nível de outros grupos culturais do país.

Lembrou que o grupo que dirige, iniciado em 2000, enfrentou e continua a deparar-se com várias dificuldades, particularmente de ordem financeira, mas nunca baixou os braços e que conseguiu demonstrar que o “dinheiro é importante, mas não é determinante”.

“Deslocamo-nos a várias localidades para estudo e recolha de diferentes estilos de danças dos vários grupos étnicos que constituem a sociedade guineense, de forma a enriquecer o nosso repertório. É por isso que o Grupo Netos de Bandim consegue sempre apresentar vários estilos de dança nos seus espetaculos e durante o desfile do carnaval”, referiu.

Negado afirmou que conseguiram incutir nos jovens que é possível fazer da cultura uma porta de saída da pobreza, “posso ter a fome na barriga, mas quando tocamos e dançamos é possível matar a fome”.

Questionado sobre como internacionalizar o carnaval e a profissionalização de grupos culturais, respondeu que primeriamente é da responsabilidade do governo da Guiné-Bissau trabalhar afincadamente e com seriedade para elevar a performance do carnaval e dos grupos.

“É preciso pensar seriamente na organização deste evento cultural. Se questionarmos o governo sobre o número de grupos culturais que existem, dos historiadores, escritores, artistas tradicionais, certamente não teremos respostas. Se não tem banco de dados é claro que não terá a noção das valências ou valores que o país tem num determinado setor” criticou, para de seguida defender que é preciso tornar, na prática, o trabalho de cartografia ou mapeamento da cultura, que, segundo a sua explicação, está também definida na carta nacional de cultura.

O ativista da cultura criticou a forma como é organizado o carnaval nacional, tendo explicado que a comissão encarregue de realizar o maior evento cultural guineense este ano tomou posse no início deste ano para realizar o carnaval em fevereiro. Acrescentou que o Carnaval da Guiné-Bissau ultrapassou a dimensão de uma comissão organizadora, tendo assegurado que é chegada a hora de institucionalizar o carnaval.

“O Carnaval da Guiné-Bissau deve ser institucionalizado e que haja um instituto nacional constituído por técnicos e responsáveis altamente competentes. O instituto deve ser munido de todas as condições para pensar estritamente na realização do carnaval durante doze meses, através das suas diferentes estruturas, desde a recolha de fundos, da identificação de diferentes patrocinadores, apoio aos gurpos nos locais. Feito todo este processo com profissionalismo, certamente no final teremos um carnaval com uma demonstração cultural mais rica e grupos altamente profissionais” notou, acrescentando que apenas a festa do carnaval pode revolucionar o turismo guineense e o setor cultural.

Cassamá disse que o seu grupo leva já quase 23 anos da existência, mas desde a sua criação, os Netos de Bandim não beneficiar de nenhum apoio ou incentivo do governo. Contudo sublinhou que este ano receberam um subsídio de 350 mil francos cfa como fundo de incentivo para preparação do carnaval.

“Agradecemos o executivo por este apoio, mas acho que o governo pode e está em condições de fazer muito mais que isso. Por tudo aquilo que o nosso grupo fez ao longo da sua existência, é triste termos de afirmar que nunca recebemos o reconhecimento ou apoio em um tambor, vindo do governo da Guiné-Bissau. Portanto se nós não recebemos este apoio, não podemos pensar que outro grupo possa ter recebido alguma coisa. Não vamos contar com o grupo Ballet Nacional que é a nossa seleção, mas também recebe uma migalha que não chega para nada”, criticou.

Em relação ao desfile dos grupos no carnaval este ano, criticou a apresentação por grupos, que no seu entender, faltou uma organização. Frisou que é uma vergonha para o país o rumo que o carnaval está a seguir agora, afirmando que os grupos estavam a dançar muito desorganizados e sem nenhuma criatividade.

“Falta a dinâmica ou a vida em termos de trajes, a essência da cultura guineense. É muito desencorajador aquilo que assistimos no desfile deste ano”, lamentou o ativista cultural, sublinhando a falta da sensibilização da população e a responsabilidade do governo na organização deste evento cultural, envolvendo as empresas das telecomunicações com o intuito de patrocinar o carnaval.

VETERANO DE MÁSCARAS AFIRMA QUE O CARNAVAL GUINEENSE PERDEU A ESPONTANEIDADE
O arquiteto e artista plástico, Carlos Alberto Teixeira de Barros, conhecido no mundo artístico por Carbar, disse que o carnaval tinha os seus interesses, mas que agora se perdeu com o passar dos anos.

“O carnaval era mais espontâneo e as máscaras não eram apresentadas apenas pelos grupos, mas havia também apresentação individual de marcaras dos tipos meio rosto, Cabeça de vaca” disse em entrevista, na qual afirmou que a espontaneidade do carnaval dava mais vantagens aos carnavalescos de brincar e apresentar diversos temas culturais sem regras.

“Hoje em dia tudo mudou, o carnaval perdeu as suas características onde a alegria, o humor, a apresentação com máscaras perderam a graça, tudo porque o governo não está interessado em ativar os atores culturais”, disse.

Explicou que há muitos anos, o governo tem demostrado o desinteresse nas atividades culturais, particularmente no carnaval, por não criar incentivos aos autores da cultura guineense.

“A cultura nasce e é alimentada através de atividades constantes, permitindo inovações de ideias, mas sem perder a essência. Eu, por exemplo, devido a algumas limitações causadas pela idade, agora só dou instruções e faço algumas rectificações na composição. Os mais novos é que tomam as iniciativas de acordo com o lema, criando inovações”, disse.

Carbar contou ao semanário que muito cedo participava com os irmãos na confeção de máscaras e dedicou a sua vida ao carnaval. E disse também ter trabalhado há muitos anos com o conceituado produtor de máscaras, Dodó das máscaras.

“Extraíamos barro aqui mesmo no bairro de Chão de Pepel Varela para o fabrico de máscaras e identificávamo-las com os lemas. Fazíamos tudo isso com grande entusiasmo e tudo era muito espontâneo”, lembrou.

Afirmou que o carnaval que se celebra nos tempos de hoje não é carnaval, porque as pessoas agora vestem-se só por vestir e que poucos grupos fazem a demostração dos cenários de acordo com o lema, através das máscaras. A Cultura do “N´turudo”, perdeu praticamente.

Contou que este ano, o Chão de papel celebra o carnaval com o lema “Devolvam-nos o nosso N´batonha”, e não participou no desfile nacional devido à não distribuição dos prémios no carnaval passado.

“O grupo optou apenas por desfilar no bairro e em algumas avenidas principais da capital nos dois últimos dias do carnaval. Produzimos mascaras, contando a história do N´Batonha e da sua bolanha baseadas nos documentários à nossa posse. Nós, de Chão Papel Varela, concluímos que o governo não está interessado na dinamização da cultura por isso optamos por organizar o nosso desfile a nível do bairro”, concluiu.

Aos mais novos atores da cultura, Carbar pediu mais criatividade e mais união de forma a alavancar os valores culturais guineenses.

Porː Epifânea Mendonça/Tiago Seide
Conosaba/odemocratagb

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