Na cidade de Mansôa vivia um “mendigo” a quem a criançada, na altura, apelidou de Tchomel. Tchomel, cujo verdadeiro nome nunca cheguei a conhecer, era também um “demente” que deambulava pelas ruas da cidade e vivia da caridade alheia; era um prato de comida aquí, uma camisa acolá e a vida, aparentemente sem grandes percalços e preocupações de maior, tratava-o bem e seguia normalmente o seu curso.
A miudagem amiúde implicava com ele gritando: - "Tchomel koh koh kou!" Sempre que isso acontecia, o interpelado agarrava em algo ao seu alcance- pedras, garrafas, etc- e açoitava o bando de crianças.
Dizia alguém- " O lar é o melhor local para ensinar, aprender e praticar bons hábitos e costumes.”
Efectivamente, em casa ensinaram-me a respeitar as pessoas, sobretudo as mais velhas. Talvez por isso, quase não me metia com o Tchomel. Para ser franco, contudo, a verdadeira razão pela qual raramente implicava com ele era porque eu era gordo e pouco ágil; não queria correr o risco de ser alcançado caso tivesse que fugir das investidas dele com pedras e garrafas.
No entanto, devo confessar que longe dos olhares dos meus pais, era realmente difícil resistir a tentação de gritar ‘ Tchomel, koh koh kou!”
Lembro-me ainda do Nhitch e do Zacarias, também dementes deambulantes pelas ruas de Mansoa.
Devia ter uns 6 ou 7 anos quando conheci o Nhitch; ele aperecia com regular frequência nas vizinhanças de Gã Vilela onde vivia eu com os meus pais e irmãs. Tal era a semelhança física com o Bob Marley que, quase duas décadas depois, quando pela primeira vez deparei-me com a figura deste último a imagem do Nhitch veio-me instantaneamente a memória.
O Zacarias tinha uma certa dificuldade em articular as palavras. Parece-me que o seu problema não era demência, mas sim alguma doença na infância que posteriormente afectou a locomoção, mas também a capacidade de falar claramente. Andava aos solavancos e como era muito amigo das pessoas, tratava todo o mundo por ' amigo'. Mas dizia' mit' em vez de 'amigo'. Pelo que ficou conhecido também por 'mit'.
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Meu pai era professor da escola primária em Jugudul, uma pacata localidade a sensivelmente 3 km de Mansôa. Como a escola situava-se um pouco distante da minha casa, o meu pai não foi diretamente meu professor. Mas, sempre que possível, sobretudo à noite, tinha aulas em casa com ele. Aulas que eu detestava pois eram, na maioria das vezes, acompanhadas de castigos. Por vezes o meu pai levava-me consigo a escola e no intervalo entre as aulas, pela imposição dele, eu tinha que lutar corpo a corpo com miúdos da minha idade, alunos do meu pai, sendo alguns relativamente mais velhos. Eu era gordo e pouco ágil e os outros miúdos, na sua maioria, eram mais ágeis, fisicamente mais robustos e habituados a esse tipo de situações. Embora não gostasse, não tinha outra alternativa senão a de lutar mesmo. Tinha que aprender a ser homem, na opinião do meu pai. Lembro-me que um desses pequenos lutadores até tinha direito a fãs e a um coro que o incitava clamando- " nkot, n'kot oi". E ele movia-se, torcia-se imitando um animal, creio que um crocodilo, tentando surpreender o adversário. Nunca cheguei a saber o significado de 'n'kot oi' em Balanta.
Foi num dia do mês de Junho já declinante, sob uma chuva miudinha, que o meu pai me levou a conhecer de perto um arrozal de arroz (bolanha) onde alguns homens, com um instrumento tradicional chamado rade, revolviam o solo fazendo curvas de níveis e desta forma preparando o terreno para o cultivo de arroz. Esse dia foi, também para mim, uma espécie de lição em como aprender a ser homem, na opinião do meu pai. Eu já estava habituado a brincar debaixo da chuva, mas desta vez apanhei um resfriado que durou alguns dias.
Em certas ocasiões, o meu pai trabalhava também, à tarde e à noite, no bar do Clube de Futebol Os Balantas. Por essas ocasiões não havia explicações. Que alivio! Ia ao clube brincar com outras crianças. No entanto, às 7 da noite tinha que já estar em casa. Sempre que fazia o percurso de volta a casa, estava sempre o Tuti de Nho Simon a minha espera que à força tirava-me os rebuçados que meu pai me dera.
Lembro-me que numa tarde, também declinante, estava a caminho de casa quando, de repente, aconteceu um ataque perpetuado pelas tropas do PAIGC( na altura eram chamados de terroristas pela tropa colonial) ao quartel de Mansôa. Eram tiros por tudo quanto é lado, como diria o Brasileiro. O instinto materno teria porventura avisado a minha mãe que eu já havia deixado a companhia do meu pai e estava a caminho de casa?! Deixou as minhas irmãs num abrigo improvisado e, certificando-se que estavam protegidas, saiu a minha procura correndo o risco de ser atingida por uma bala perdida.
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Lembro-me do professor Artur e do Professor Lobo, este já na quarta classe. Quando fiz os exames de segunda classe os resultados foram tão bons que os professores acharam por bem fazer no mesmo ano os exames de terceira. Foi assim que transitei de segunda para quarta sem ter estudado a terceira. Depois da instrucao primária tive que ir viver para Bissau a fim de prosseguir os estudos secundários. Passava as férias em Mansôa e o Tchomel ainda estava nas ruas. Curiosamente, parecia não envelhecer, pois fisicamente estava na mesma. Passava por ele convencido que já nao se lembrava de mim, porque poucas vezes implicara com ele no passado. Mas estava enganado; ele lembrava-se de mim e bem. Tive oportunidade de constatar isso muitos anos mais tarde e já tinha eu mais de vinte anos idade. ...




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