segunda-feira, 1 de julho de 2024

Artigo de opinião: VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA AS MENORES E AS SUAS CONSEQUÊNCIAS


Na Guiné-Bissau, nos últimos anos, tem tido denúncias da violência sexual contra as menores. Essas práticas muitas vezes acontecem até com as mulheres grávidas.

O mais caricato é que as vítimas são na maioria enteadas, em alguns casos são sobrinhas. Por acaso não tem sido uma surpresa, pois a Luci Pfeiffer e seus colaboradores em um estudo de revisão dos aspetos peculiares que envolvem o abuso sexual na infância e na adolescência, mostraram que este tipo de violência é a mais frequente. Antes de avançar para os factos que tem estado a repetir-se, trago-vos um pouco sobre a definição da violência sexual para melhor se enquadrarem.

De acordo com Couto Cunha (2021), o abuso sexual é a forma de violência que acontece no seio familiar ou fora dela, sem conotação de compra do sexo, fazendo com que o agressor seja a pessoa conhecida, ou desconhecida. Ou seja, o fenómeno consiste numa relação que podemos dar o nome de adultocentrismo, uma prática que estabelece o poder aos adultos, deixando jovens e crianças com menos liberdade, anulando assim as suas vontades tratando-os como não sujeitos a direitos e/ou como objetos de puro desejo sexual.

Existem várias definições sobre a violência sexual, mas de uma forma resumida pode-se dizer que a violência sexual é qualquer ato de uma pessoa maior de idade contra uma outra, e podendo até ser a menor, para satisfazer as suas necessidades, sejam elas, a masturbação, discursos abertos sobre atos sexuais destinados à despertar interesse da outra pessoa, neste caso a criança ou adolescente, que decorre até ao envolvimento físico.

A Guiné-Bissau sendo um país laico, cada um é dotado da sua própria fé, sem fundamentos científicos, muitas vezes os suspeitos usam isso para se justificarem sobre os atos bárbaros, alegando que foi orientado por um vidente para envolver-se com uma criança/adolescente com promessas de prosperidade e obter muito dinheiro. O agressor perde a capacidade de raciocínio e leva a envolver-se para atingir o objetivo do mesmo. Quando coisas assim acontecem, os familiares ainda tentam encobrir com justificações de cerimónias tradicionais que não foram feitas, levando o agressor a repetir atos de violência sexual.

Com efeito, tem acontecido várias denúncias sobre a violência sexual das menores de idade declaradas por pais ou vizinho das vítimas, através dos meios de comunicação social ou por organizações não-governamentais e sociedade civil.

Em síntese, menciono três casos de denúncias que têm acontecido no país e, em diferentes épocas.

Por exemplo, em abril do ano 2022, acompanhamos na página da Rádio Voz do Povo uma denúncia feita pela ONG “Mindjer Ika Tambur’’ de um caso da violência contra uma criança de 14 anos de idade e, o suspeito tinha entre os 38 e 39 anos de idade e, era vizinho da mesma. A ativista Iolanda Garrafão, líder da organização, afirmava que tem recebido denúncias de casos do mesmo género quase diariamente através das redes sociais, dos contactos com jornalistas e/ou dos familiares.

Em novembro de 2023, acompanhamos a denúncia de um caso através da página do Facebook da Rádio Sol Mansi, onde uma adolescente de 15 anos foi grávida do próprio pai, que a abusava há mais de dois anos, filha de pais separados e a mesma vivia com o pai. A denúncia foi feita pela própria vítima com ajuda de uma tia.

O último caso aconteceu no dia 12 de fevereiro do ano corrente (2024), foi anunciada pela Rádio Voz do Povo na sua página do Facebook, onde descreveu com detalhes a violência sexual de uma criança de três (3) anos de idade, nas zonas urbanas do Bairro d’Ajuda, em Bissau. O homem acusado de violar sexualmente a criança, aparentava ter quarenta (40) anos de idade, e a mãe da criança reafirmava o acontecido e explicava como tudo terá acontecido. Descrevendo o episódio de seguinte forma: ‘’sempre controlo o corpo da minha filha, ela chega aflita e a chorar, após alguns minutos conseguiu explicar-me o que passara, deixava a minha filha sentada ao colo do suspeito, eu até queria levantar, mas, sempre ponderava, pois, pensava que tinha boas intenções, depois do ocorrido, fui direto à casa de banho, sem força, tentei tirar-lhe de dentro e alguns vizinhos ajudaram, mas não foi suficiente pois ele conseguiu fugir’’, explicava a mãe da criança.

Com todo este acontecimento que temos vivido durante estes últimos anos, apesar das denúncias, a prática continua a crescer absurdamente no país, ninguém é responsabilizado. O interesse de resolver estes atos só sucedem no período em que acontecem coisas semelhantes, e depois de um certo período já não se vê nenhum tipo de motivação de os resolver. A sociedade precisa de ser sensibilizada, só assim podemos minimizar o sofrimento das menores, como se diz: ‘’i mindjor u tadja di ku kumpu’’.

Há vários casos de denúncias para mencionar, porém, prefiro expor que, na maioria desses casos, as vítimas já eram escravizadas sexualmente, algumas conseguem denunciar só depois de ficarem grávidas ou fossem apanhadas em flagrantemente. Depois da narração de alguns episódios ocorridos de algum tempo para cá, acho que já temos condições de colocar algumas perguntas de reflexão sobre o assunto em epígrafe.

1- Por que as vítimas não conseguem fazer denúncia do agressor logo na primeira tentativa?

2- Se não ocorrer gravidez, será que algumas vítimas fariam a denúncia?

3- Quais as consequências da violação sexual numa menor?

4- Será que a justiça pode acabar com essa prática?

Convido-vos a esta reflexão, pois cada um de nós pode responder a estas perguntas à sua maneira, contudo, deixo aqui as minhas reflexões:

Em primeiro lugar, as vítimas nem sempre conseguem fazer a denúncia dos suspeitos por várias razões, algumas para citar: ou por medo ou por vergonha. Às vezes, o próprio agressor aproveita deste facto para continuar praticando a violência.

Em segundo lugar, por exemplo, os conteúdos da Maria Leonina Couto Cunha – Diretora do Departamento de Enfrentamento de Violações aos Direitos da Criança e do Adolescente – SNDCA/MMFDH, Brasil, reportaram o seguinte: ‘’as crianças/adolescentes não inventam de estarem a ser abusadas sexualmente, 92% das vítimas dizem a verdade e só 8% inventam, sendo que ¾ das histórias inventadas são induzidas pelos próprios adultos’’. Aproveito para deixar aqui alguns pontos observados pela OMS (Organização Mundial de Saúde), esta sustenta que o que leva as vítimas a não denunciarem logo na primeira tentativa, é por falta de apoio; por vergonha, medo de represálias, sentimento de culpa, receio de não acreditarem nas coisas que ela conta, e o terror de ser maltratada depois de contar, ou ser socialmente marginalizada. Em relação à segunda pergunta colocada, em cima, a resposta tende a ser relativa, contudo, para mim a resposta é não uma só, tendo em conta os factos narrados logo na primeira resposta, se houver possibilidade de a vítima conseguir denunciar, ou seja, a confiança tem de ser passada, o apoio e a segurança têm de ser postas a todo caso, até porque cada caso é um caso.

A OMS tentou ajudar-nos a responder a terceira pergunta, e divide as consequências da violência sexual nas mulheres em dois grandes grupos: saúde reprodutiva e saúde mental.

Na saúde reprodutiva, podemos mencionar a gravidez não planeada, aborto inseguro, disfunção sexual, fístula traumática e infeções sexualmente transmissíveis, incluindo VIH/SIDA.

Na saúde mental, temos a depressão, transtorno por estresse pós-traumático, insónia, e comportamento suicida. Na Guiné-Bissau, o sistema de saúde está dividido em três grupos, a citar: sistema de saúde pública, tradicional (medicina tradicional ou curandeiros) e privada.

As consequências da violação sexual são incalculáveis devido à fragilidade do sistema de saúde pública por falta de dar a cobertura nacional e por falta do acesso aos centros de acolhimento, isso faz com que o sistema de saúde tradicional fique com várias doenças, que podem ser provocadas por violação em menores que passam despercebidamente ou a própria família esconde informações nas consultas médicas. Importa salientar que, o Ashley Grosso e os seus colaborares, num inquérito realizado nas quatro grandes cidades da Guiné-Bissau, publicado no PubMed outubro de 2022, demonstrou que 26, 3% (133/505) das mulheres trabalhadoras do sexo na Guiné-Bissau começaram a “vender” sexo antes dos 18 anos, ainda essas mulheres revelaram que o início da venda do sexo foi associado à experiência de sexo forçado antes dos 18 anos de idade e nenhuma delas tinha feito teste para avaliar o estado da sua saúde.

Em 2020, estima-se uma prevalência de 3,0% (3,8% nas mulheres e 2,2% nos homens) numa população de 15 a 49 anos de idade, no mesmo ano foram registados mais de 1.700 novos casos de VIH no país, chegando a uma incidência de 1,23 por 1 000 habitantes, muitos foram diagnosticados na fase avançada da doença, situação alarmante e muito preocupante. Não estou a dizer que estes casos foram vítimas de violência sexual, estou apenas a chamar atenção sobre consequências e o risco da violência.

Em relação à justiça, não é fácil acabar com essa prática numa sociedade como a nossa, não estou a menosprezar o papel que a justiça pode desempenhar na sociedade guineense, mas sim estou a mostrar a realidade que temos visto e que acontecem noutros países desenvolvidos, que têm travado para combater a criminalidade do mesmo género. O certo é que a nossa justiça pode reduzir essa prática com a colaboração da população, através de denúncias. Nesse aspeto, não tiro a responsabilidade aos governantes que podiam simplesmente introduzir programas de saúde escolar no sistema educativo do país, tendo em conta a facilidade do acesso aos centros de acolhimento, sobretudo nas regiões ser muito limitado. O Estado deve começar a desenvolver programas de sensibilização da população e ter no orçamento do Estado o bolo para financiar diferentes organizações que atuam na proteção dos direitos das crianças e contra violência nas menores, porque a nossa sociedade precisa de ser sensibilizada e orientada sobre como denunciar este tipo de prática nociva à saúde de mulher.

Não posso fechar esta reflexão sem falar sobre a violência sexual contra meninos, parece que a violência contra meninos tem sido um tabu. Na verdade, existem casos deste género, o problema é que pode ser raro e não são denunciados, desde a história da violência contra género sempre se tem verificado a predominância no sexo feminino, isso não significa que os meninos não sofrem das mesmas violências, apesar de não existirem estudos na Guiné-Bissau a respeito. Aliás, não se encontram casos de denúncias desse tipo para confirmar a existência da mesma, porém, de acordo com os tipos de violência e a sua definição, muitas mulheres/homens abusam sexualmente as crianças e os adolescentes. O Estado e a população devem colaborar para combater essa prática, mas antes de isso, o Estado deve criar condições para que a população tenha acesso à informação através de programas de sensibilização sobre como denunciar, como descobrir que está perante uma violência sexual e está privado dos seus direitos, e por fim, a justiça deve fazer o seu trabalho para desencorajar esta prática, através da responsabilização dos agressores dos seus atos.

Rio de Janeiro, 26 de junho de 2024.
Dr. Vasco João Mendes, médico especializando nas Doenças Infeciosas E Parasitárias INI/FIOCRUZ.

Radiosolmansi com Conosaba do Porto

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