(Reflexão)
O que aconteceu na Assembleia Nacional Popular (ANP) da Guiné-Bissau, no dia 3 e 4 de junho de 2021, não foi uma simples briga entre os deputados de fações politicas diferentes. Foi sim, um verdadeiro confronto entre o Populismo e a Democracia! Trata-se de um fenómeno social muito atual, crescente em muitos países do mundo, na África, América do Norte, América Latina, Europa Oriental e Rússia, onde vem-se registando o seu crescimento. No exercício da Democracia, os movimentos populistas através de seus líderes, como Presidente Donald Trum (EU), o Presidente Jair Bolsonaro (Brasil), o Presidente Jacob Zuma (África do Sul), o Presidente Mahmoud Ahmadinejad (Irão), o Presidente Hugo Chávez (Venezuela), o Primeiro-ministro Gordon Brown (Inglaterra), etc., vêm ganhando espaço. O seu debate tem merecido muita atenção das Ciências Sociais e Ciências Políticas.
Muitos estudiosos vem questionando se no exercício do direito de cidadania, o Populismo não põe em causa o sistema democrático? Parece não haver consenso sobre esta matéria. Segundo Teixeira (2018), é o único consenso em que não há consenso. Porém, o debate continua e o Populismo mesmo sendo um conceito amplamente contestado (Roberts 2006; Barr 2009), frequentemente, alguns autores o definem como uma manifestação ideologicamente diverso. Outros, que há uma certa dificuldade em demonstrar a sua relevância enquanto uma ideologia (Mudde e Rovira Kaltwasser, 2013; Taggart, 2000). São varias as definições do Populismo (Acemoglu et al. 2011, Ionescu e Gellner 1969, Canovan 2002, Hawkins 2009, Goodliffe 2012, Postel 2007), sendo a mais citada, na última década, na opinião de Aslanidis, a de Cas Mudde, que o vê também como uma ideologia (2016). Margaret Canovan (2002) tal como Mudde, reclamam o seu estatuto ideológico “centrado no magro” (Aslanidis, 2016). E, Gidron et al (2013) partilhando este mesmo pensamento, diz que é um estilo discursivo e uma forma de mobilização política (igualmente, Moffitt e Tormey 2013, Pauwels 2011).
Na verdade, o Populismo sob as suas diferentes perspectivas políticas, económicas, sociais e discursivas assentes em certas teorias e metodologias, tendo como principal foco, um conjunto de práticas discursivas que geralmente faz apelo ao “povo”, contrapondo a “elite” ou a um grupo social forte dominante. Analogamente, a Democracia cuja palavra etimologicamente, advém do grego antigo, no século V a.C., demokratia em que demos é “povo” e kratos é “poder”, significam “governo do povo”, tem um ponto em comum com o Populismo. Quer um, quer outro, na sua essência faz apelo ao “povo” soberano. No século de XIX, o presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln (1861 – 1865), defendia que “a democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo.”
Atualmente, o modelo da Democracia ocidental tornou-se moda. No plano político (internacional), como económico as agências e unidades internacionais, como a União Europeia (UE), a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os governos europeus passaram a exigir a instauração de um sistema democrático, como condição para a adesão e envio da ajuda.
Afinal, qual a relação entre a ideologia Populista e a Democracia? O pleno exercício do sistema democrático pressupõe que o cidadão é portador de um certo nível cultural. Que está preparado para aceitar a convivência democrática, respeitando os princípios da liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de religião, dos direitos dos partidos políticos, do Estado de direito, dos direitos humanos e outros (Almond 1956; Pye 1965; Dahl 1971; Bobbio 1987; Diamond, Linz, e Lipset, 1990). Como escreveram Lipset et. al “os direitos democráticos desenvolvem-se nas sociedades em grande parte através das lutas de vários grupos - de classe, religiosos, seccionais, económicos, profissionais, etc. - uns contra os outros e contra o grupo que controla o Estado. Cada grupo de interesses pode desejar realizar a sua própria vontade, mas se nenhum grupo for suficientemente forte para ganhar poder completo, o resultado é o desenvolvimento da tolerância.” Efetivamente, a tolerância é o ponto fraco do Populismo, que usufruindo de um regime político democrático fala em nome do “povo”, ignorando o interesse dos outros. Os populistas chegando ao Parlamento em observância do seu estatuto e interesse social, luta pelo controle político do seu grupo. Esta dinâmica e relação de força para exercer o controle político, o poder da governação no livre exercício da Democracia, no nosso contexto, infelizmente, vem beneficiando o crescimento dos movimentos populistas que muitas vezes, involuntariamente impõem a instabilidade política. Foi exatamente o que aconteceu no dia 03 e 04 de junho na ANP. A intolerância passou a dominar e os senhores deputados dos diferentes grupos parlamentares: o Partido Africano para a Independência (PAIGC), o Movimento de Alternância Democrática (MADEM – G15), o Partido para a Renovação Social (PRS) e a Assembleia do povo Unido - Partido Democrático da Guiné-Bissau (APU-PDGB), entraram em confronto.
Porque os deputados da ANP, em pleno exercício da Democracia, em desrespeito as regras e as decisões democráticas adotaram a postura de intolerância? Facilmente, podemos entender um tal comportamento contextualizando os movimentos populistas face a Democracia, que na distribuição das forças, vem confrontando, violando as regras do nosso sistema democrático, cuja intenção é proporcionar mais estabilidade. Para se poder entender o confronto entre o Populismo e a Democracia, junto à ANP, na luta pelo controle político, é indispensável efetuar-se uma analise histórica e sociológica dos seus processos evolutivos na Guiné-Bissau. Pois, o Populismo está profundamente enraizado na ANP (isso deve-se a forma como este órgão soberano de Estado surgira). E, o sistema democrático guineense vem sendo muito questionável?
O Estado da Guiné-Bissau é resultado da herança colonial, forjada na Luta de Libertação Nacional (LLN), sob a liderança de Amílcar Lopes Cabral. Na marcha para independência nacional, devido as ideias de influência marxista defendidas por Cabral, cedo as “elites” coloniais se chocariam. Amílcar e seus apoiantes fundadores do PAI, que mais tarde se tornaria PAIGC: Aristides Pereira, Luís Cabral, Júlio de Almeida, Fernando Fortes e Elisée Turpin, apesar de serem todos originários da “elite urbana colonial”, no tocante ao modelo de independência (incondicional, sob a influência do vizinho Conacri, ou autodeterminação, do Senegal) desentenderiam-se com a “elite económica autóctone nacionalista” emergente da década 40, do passado século, a partir da política colonial de “Fomento da Província”. Estrategicamente, Cabral não encontrando apoios das “elites” nas zonas urbanas para uma luta política eficaz, em prol da independência, opta pela mobilização patriótica das tabancas (campos). A partir da clandestinidade, em Conacri, convida as “elites” a suicidarem-se enquanto classe. Rapidamente, as fileiras do PAIGC foram engrossadas com combatentes populares provenientes das tabancas. Lembra-se que na ocasião, a sociedade colonial guineense, para efeitos de mobilização para a LLN, foi distinguida por Amílcar, em dois espaços: zonas urbanas e tabancas. As ideias elitista de Cabral, defendidas pelo PAIGC, não tardaria a chocar com os hábitos e costumes das populações das tabancas.
Em 1963, Amílcar com intuito de afirmar as ideias do Partido, junto as populações das tabancas convoca para Cassacá, o I Encontro de Quadros de Partido (que viria a tornar-se no I Congresso do PAIGC). No quadro da LLN, para elevar o nível dos filhos dos camponeses, introduz escolas nas zonas libertadas. Assim, se iniciaria o movimento populista, que na sua correção de forças de aceitação dos princípios do Partido, ditados por Cabral (que nunca se abdicou do contestado projeto de “Unidade Guiné Cabo-Verde”), cuja consequência acabaria por ser vitima de um bárbaro crime, em Conacri, a 20 de janeiro de 1973. Assassinato esse executado pelos seus próprios camaradas: Inocêncio Kani e Momo Turé, combatentes populares. Na verdade, este tipo de confronto entre a “elite” e os combatentes populares a história está cheia de exemplos. Basta citar-se, ao que acontecera no Natal de 1989, ao então Secretário Geral do Partido Comunista Romeno, Nicolae Ceausescu e sua esposa, que após um julgamento popular pelos seus camaradas, foram condenados à morte.
Com a morte de Cabral, foi realizado o II Congresso do PAIGC, que decorreu nas matas de Madina de Boé, de 18 a 22 de julho de 1973. E, no âmbito da declaração unilateral da independência, foi criada a ANP e eleito os representantes do “povo”. Neste contexto, nas condições naturais em que a ANP surge, a aposta do perfil de deputados não podia ser outra senão populista. O Populismo mais uma vez vence e passa a ditar as regras. Os combatentes populares guineenses, passam a disputar os lugares das estrutura do Partido, com a maquina ideológica do Partido, constituída por uma minoria da elite nacionalista cabo-verdiana, que haviam aderido a LLN. Sob fortes contestações, Aristides Pereira pertencente a elite colonial cabo-verdiana é escolhido como sucessor de Amílcar, tornando-se Secretário-Geral do PAIGC e seu meio-irmão Luís Cabral para o comando do PAIGC de Bissau.
No entanto, na sequência do movimento democrático de 25 de abril, em Portugal, esta antiga potencia colonial, em 1974, reconhece a independência da Guiné-Bissau. Nessa altura, o PAIGC já é um profundo movimento populista. Ao instalar-se nas zonas urbanas inaugura uma desenfreada perseguição contra as “elites”. Estas procuram refúgios no exterior, Senegal e Portugal. Ignorando, o que a sociologia defende, que quando se destituí uma “elite” leva-se no mínimo 25 anos para preparar uma outra, sem a certeza de que essa vai ser mais competente.
A 14 de Novembro de 1980, um grupo de combatentes populares das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), em consequência do polémico III Congresso de Bissau (1979), lidera um golpe militar que tem à frente João Bernardo Vieira (vulgo Nino Vieira), cuja manifestação é nitidamente a expressão de afirmação Populismo no seio do PAIGC. Em 1986, os movimentos populistas, constituído por novas elites militares das FARP confrontam-se entre si, originando o caso de 17 de outubro, que a pretexto de o coronel Paulo Correia e seus companheiros, entre os quais, o jurista Viriato Pã, pretenderem dar um golpe militar são condenados e fuzilados. Até à introdução da Democracia em 1994, o país passa a ser governado por uma nova elite populista apoiante de Nino Vieira. Pós à introdução do multipartidarismo surgem inúmeros Partidos de cariz popular de que o PRS de Kumba Yalá, pode ser citado como um exemplo. No novo cenário político, destaca-se a Resistência da Guiné-Bissau – Movimento Bafatá (RGB), criado em 1986 na clandestinidade em Portugal por Domingos Fernandes Gomes, um Partido elitista que reunia à sua volta, um grande números de quadros guineenses da diáspora. Com a sua presença na ANP, a sua bancada parlamentar passou a brindar a sociedade guineense com um alto nível dos debates. Porém, desentendimentos internos na RGB, levaria Francisca Vaz (Zinha Vaz) a deixar esse Movimento, para ajudar a criar em 2003 a Plataforma Unida. Uma Guerra Civil em 1998, liderada por um movimento populista das FARP, viria afastar Nino Vieira do poder, vencedor das primeiras eleições ditas democráticas.
Em 2004, o PAIGC volta a vencer as eleições legislativas e o seu líder Carlos Gomes Júnior (Cadogo), oriundo da nova elite económica, torna-se primeiro-ministro. No ano seguinte, Nino Vieira após 5 anos de exílio em Portugal, volta a vencer as eleições presidenciais. Não tardaria a destituir Cadogo, nomeando o seu apoiante Aristides Gomes. Em 2007, o PAIGC forma uma aliança parlamentar constituída por PRS e Partido Unido Social Democrático (PUSD), através de uma moção de censura afasta Aristides Gomes do poder, tornando Martinho Ndafa Kabi, primeiro-ministro. Os confrontos entre o Populismo e a Democracia são cada vez mais uma realidade. No Congresso de Gabú, a elite e o combatente popular voltam a disputar a liderança do PAIGC, vencendo Cadoco a Malam Bacai Sanhá.
Em 2014, Domingos Simões Pereira, antigo secretário executivo da CPLP, um membro da nova elite cultural, apoiado por uma aliança de fações internas do Partido, vence o líder populista Braima Camara e após as eleições legislativas é nomeado primeiro-ministro. O candidato do PAIGC, as eleições presidenciais José Mário Vaz, um populista, vence as eleições na segunda volta, contra o candidato apoiado pelo PRS, Nuno Nabiam. Uma profunda crise afeta internamente o PAIGC. Em consequência, dos conflitos internos, 15 deputados votam a moção de censura contra Domingos. São expulsos do PAIGC. É a lei da intolerância que passa a vigorar. A batalha entre o Populismo e a Democracia ganha contornos incontroláveis. Os 15 deputados dissidentes do PAIGC, de entre os quais, 2ª vice-presidente Hadja Satu Camará Pinto, em 2018, formam o MADEM – G15.
Em 2019, o PAIGC volta a vencer as eleições legislativas, mas, uma aliança populista formada por MADEN – G15, PRS e Assembleia do povo Unido - Partido Democrático da Guiné-Bissau (APU-PDGB), liderada pelo atual Presidente da República Umaro Sissoco Embaló, afasta-o do poder para o lugar da oposição.
Em suma, o confronto na ANP, do dia 03 e 04 de junho de 2021, que deixa muito a desejar, é consequência da intolerância desta última década, que tem favorecido o crescimento do Populismo na Guiné-Bissau. Não sendo de estranhar que na correlação de forças na ANP, os senhores deputados desempenhassem um papel de intolerantes. Pois, segundo Lipset, as eleições democráticas oferecem aos eleitores uma forma eficaz de eleger o governo e Presidente da República. Se é assim, o típico conflito entre o Populismo e a Democracia, tanto da direita como da esquerda, prende-se com o nível dos debates de um Parlamento, que infelizmente, na nossa ANP está cada vez mais empobrecido.
Finalmente, um questionamento se coloca quem são esses deputados, nossos representantes do “povo”? Ao identificarmos os seus perfis facilmente, podemos entender de que não estamos a falar de uma “elite” política com clarividência, mas de cidadãos comuns oriundos das tabancas, que apoiados por este ou aquele Partido se tornam deputados (devendo ressalvar-se que um individuo pode ser originário da tabanca e a amanhã ser da “elite”). Podendo entender-se que o crescimento do Populismo na sociedade guineense, futuramente pode pôr em causa a Democracia.
Carlos Vaz
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