sexta-feira, 29 de março de 2024

Guiné-Bissau: Filme "Ressonância em Espiral” apresentado em Paris



“Ressonância em Espiral” foi rodado na aldeia de Malafo na Guiné-Bissau, o filme é da autoria de Filipa César e Marinho de Pina. A longa metragem foi apresentada esta quinta-feira, 28 de Março, em Paris, no festival Cinéma do Réel, um certame dedicado ao documentário.

RFI: “Ressonância em Espiral” acompanha momentos da vida diária da população da aldeia de Malafo, na Guiné Bissau, onde se está a construir um projecto colectivo. A mediateca 'Abotcha', em balanta significa 'no chão', arquiva documentos históricos que se vêem e ouvem ao longo do documentário. De onde surgiu a ideia de acompanhar a construção deste projecto?

O filme é menos sobre a construção, mas sobre as construtoras e sobre as mulheres porque vamos dizer que a terra é uma mulher. O feminino é o centro do filme, o nascimento, o útero de onde vem tudo. As ideias nascem de algum sítio ou o projecto-sonho nasce de algum sítio. Ali está centrado também essa ideia do tempo e da circularidade, a espiraldade. Tentámos explorar essa ideia no filme, a par de outros processos também que acontecem na vida diária e que afectam a vida das pessoas, da comunidade, do mundo de uma certa forma porque as intempéries que o ser humano enfrenta podem ser diferentes, dependendo do sítio e contexto, mas acabam por convergir sempre para aquele mesmo ponto de desestabilizar as relações humanas. É um dos aspetos do filme como sonhar para contrariar a entropia?

Porquê este filme e este projeto, como é que surge esta ideia de tudo acontecer nesta aldeia guineense?

O filme é só uma parcela e representa só uma ínfima parte disto. O trabalho que temos feito em Malafo, eu costumo dizer, é resultado de encontros, de convergências e de coincidências. É a história, por exemplo, Amílcar Cabral organizou a luta armada, lutou para libertar a Guiné-Bissau. Já que em Portugal se celebram 50 anos de 25 de Abril, a luta organizada por Amílcar Cabral influenciou bastante a Revolução de Abril, ou seja, não aconteceria a Revolução de Abril, não fosse a luta de Amílcar Cabral.

Amílcar Cabral começou a sua luta há muito tempo em 59 começou a luta armada, mas já tinha começado antes. Sana Na N'Hada foi parar à luta por diversas razões e ele foi estudar cinema a Cuba, através de Amílcar Cabral. Ele filmou e foi um dos pioneiros do cinema guineense, ele e outros três companheiros. Sana Na N'Hada começou a filmar e a criar a ideia de sonoteca, de gravar esses materiais e de ter esses arquivos. Ali, naquele espaço, houve uma senhor que teve a ideia de criar uma escola para a sua aldeia.

Eu fui ver um filme da Filipa e Sana a Berlim e acabei por me cruzar com eles. Também tinha uma ideia de criar uma biblioteca na minha aldeia. São muitos sonhos similares que acabaram por convergir neste trabalho. Como esta escola em Malafo nasceu depois de 74, eles tinham a escola e a escola foi construída pela comunidade e é gerida pela comunidade. Eles queriam uma biblioteca e nós queríamos fazer uma mediateca, então foi o casamento perfeito. Há convergências de intenções e de vontades e são várias histórias que se convergem no mesmo ponto e várias histórias que tencionam olhar para o depois, cada um à sua maneira, mas numa ideia de comungar tudo. E isso é que temos estado a trabalhar lá, como o Sana fala no filme de concertação, dos métodos de concertação: Não tomar uma decisão sozinho, mas tomar em conjunto e tentar beneficiar o máximo das pessoas, tomando essa decisão sem criar rupturas na comunidade e na estrutura social comunitária.

O que o Sana diz é que não interessa implementar uma novidade pela novidade em si, mas implementar alguma coisa que seja uma escolha e uma vontade de quem vive nesta aldeia?

Sim, é mesmo por aí. Por exemplo, nós temos concertações de espaços diferentes. Quando trabalhamos juntos eu, a Filipa, o Sana, o Sulejmani e o Braima discutimos primeiro a nossa visão e o que desejamos e o que temos para levar para lá. Eles também discutem o que têm, o que querem e depois primeiro fazemos uma reunião para verificar as possibilidades. O que nós pensamos, se é possível, o que eles pensam se é possível. Também costumamos fazer uma coisa que é sessão de sonhos em que todos atiram para a parede, o bar, o que quiser.

E que sonhos são esses?

Por exemplo, a primeira sessão de sonhos que fizemos tinha um miúdo, com os seus 20, que queria prédios enormes, estradas alcatroadas e coisas assim do género. Aquelas pontes que se vêem nos filmes americanos e tinha uma senhora que queria mais árvores, mais palmeiras. Ela aparece no filme mesmo na horta. Ela queria mais palmeiras porque as palmeiras andam a desaparecer e naquela aldeia as palmeiras fazem mais sentido do que os prédios. As palmeiras fazem mais falta do que prédios. Depois dessa sessão de sonhos, plantámos mais de 270 árvores, mas ainda não construímos nenhum prédio alto. Temos a mediateca, mas o padrão do sonho é diferente.

No filme, dizem, a dada altura, 'Faz falta haver mais árvores' e que 'Ao longo dos últimos 50 anos se têm cortado árvores porque elas sujam as ruas'?

Sim, é que temos andado a cortar muitas árvores na Guiné, indiscriminadamente, porque a cidade está a expandir-se na Guiné-Bissau, particularmente, a cidade está a expandir-se descontroladamente. Então corta-se tudo, cortam as árvores, não criam áreas específicas de verde para plantar casas e as árvores que estavam na rua andam a ser cortadas. Ultimamente, andaram a cortar mangas nas ruas de Bissau. Se é porque sujam não sei. Desde 2011 houve cortes de madeira indiscriminadas, madeira a ser enviada para a China para não sei onde. Florestas inteiras derrubadas e com árvores que levam 40, 50 anos a terem toda a sua magnificência estabelecida. Na obra que fizemos também cortámos três árvores para fazer a madeira para casa, mas a população tem uma forma de identificar árvores porque o solo é muito duro, algumas não fixam raízes profundamente e eles identificam as árvores mais periclitantes que podem cair com o vento e cortam essas para construir. Entretanto, vamos plantar mais para compensar aquelas que cortámos. Então temos estado a plantar cada vez mais, a ver se daqui a 50 anos possamos dizer "Olha lá, cortámos três, mas...

"Plantámos 500"?

Yes!

No filme ouvem-se gravações de Amilcar Cabral bem como da antiga combatente do PAIGC, Carmen Pereira, que falam sobre a questão do feminismo. A questão do feminismo e do sonho de igualdade entre homens e mulheres era um dos sonhos de Amílcar Cabral. No filme, vemos mulheres a ouvir estas gravações de há mais de 50 anos, Vêmo-las a falar com grande convicção; a dizer o quanto elas trabalham, são elas quase que sustentam aquele país e que fazem andar a Guiné-Bissau para a frente. O que é que resta deste sonho de igualdade, existe igualdade?

Não, o sonho continua por realizar. O que está diferente é que cada vez mais mulheres sabem que esse sonho é preciso construir e que todos temos que ter parte nisso, tanto homens como mulheres. É triste ver e ouvir a senhora falar porque depois de 50 anos a situação não melhorou em nada. O que ela diz e repete é o que o Cabral fala também na sua gravação e a Carmen Pereira; a situação não melhorou. As mulheres têm que trabalhar ainda o dobro para conseguir metade do que os homens fazem e muitas vezes os homens nem trabalham. São as mulheres que sustentam a economia real da Guiné-Bissau e não estou a falar dessa economia de mercado que só certos iluminados conhecem, que é jogar na banca e não sei quantas, mas aquela que põe pão na mesa, que põe as crianças na escola, que põe o país a existir, ainda são as mulheres que fazem essa economia.

Perceber que mesmo durante uma luta colonial, onde supostamente o inimigo era o colonialista, Cabral sabia que não... sabia que tínhamos um sistema opressor do patriarcado, que também devia ser destruído junto com o sistema colonialista e mesmo tendo ali os seus companheiros, a maior parte eram homens, boa parte ainda defendia esse sistema que continua a existir porque depois da luta não se fez muito para mudar. Ele falava com os seus companheiros porque sabia a mentalidade que tinha e que era preciso lutar para estabelecer essa igualdade.

Como é que se pode chegar a uma igualdade?

Primeiro, acho que precisamos de ter consciência enquanto homem dos nossos privilégios e de como, ao tentar manter os nossos privilégios, estamos a criar opressão. Porque os privilégios só existem quando faltam direitos a outras pessoas. De outra forma não seriam privilégios, seria o normal. Temos que saber abrir mão dos nossos privilégios. O Cabral falava do suicídio da classe. Dizia que as pessoas que podiam dirigir o país depois da independência seria a pequena burguesia porque conhecem o aparelho. Entretanto, se não suicidassem a sua classe e trabalhassem para o povo, iam ser só os novos colonialistas vestidos com outra cor e foi o que aconteceu porque a burguesia tomou o poder e manteve todo o sistema colonialista a acontecer. Trocámos a bandeira, tirámos a de Portugal, erguemos uma Guiné-Bissau, trocámos o nome do país, mas o sistema continua a ser o mesmo. É preciso suicidar a classe, suicidar os privilégios e tentar ser mais comunitarialista possível.

Há uma parte em que vocês retomam naquela espécie de pântano, em que estão mergulhados em várias posições e falam de humanismo, de humildade e dessa questão de suicídio de uma classe.

'Acotcha' significa no chão, a filosofia de trabalharmos nesse espaço é uma ideia de horizontalização dos saberes. É descer para o chão, porque muitas vezes o problema é pensar que determinados saberes são melhores do que outros, quando é muito necessário entender sempre os contextos e os tempos. Estávamos ali a discutir a questão de precisávamos de ser humildes e escolhemos aquele lugar porque na lama e brincarmos que é o útero da terra. Estamos ali no útero e sentimo-nos confortáveis para discutir questões muito, muito pesadas.

Confortáveis, mas também existe ali um desconforto nalgumas posições.

Sim, definitivamente, porque mesmo o nosso trabalho não é linear e não é fácil, é cheio de contradições. Mesmo cheio dessas contradições temos que criar um espaço seguro. Mas criar um espaço seguro não é também só deitar ali... É desconfortável também.

Existe um espaço seguro?
Não sei, mas queremos crer que em determinados momentos conseguimos esses espaços seguros e os espaços moldam-se também, mas o facto de conseguirmos, em determinada altura esse espaço seguro, usarmos a segurança que o espaço provém para falarmos de alguma coisa ou para dirigirmo-nos a alguma questão. Por exemplo, durante aquela apresentação em que ouvimos o Cabral a falar e que aquela senhora falou, estavam muitos homens, alguns homens, não muitos porque geralmente não participam na coisa das mulheres. Estavam alguns homens ali, mas as mulheres sentiram se à vontade para falar disso e alguns homens sentiram-se incomodados e foram-se embora.

 Naquele instante conseguimos um espaço seguro e, por exemplo, o espaço que temos também ali que construímos, na mediateca é muito usado pelas crianças; uma prática que aprendemos agora e que fazemos muitas vezes são sessões de dormir, sessões de sono depois do almoço porque tinha um miúdo que ia sempre lá depois do almoço fazer uma sesta. Então começámos a fazer a sesta com ele. Nessa parte das mulheres chegámos a fazer uma sessão porque elas trabalham o tempo todo. Foi assim 40 minutos só deitadas a dormir e dormiram profundamente...

Isso fez também no documentário...

No documentário vê-se algumas assim relaxadas, a dormir, porque no documentário a forma como está montada parece que estava a ouvir Amílcar Cabral. Algumas ouviram e adormeceram, mas foi mesmo assim uma música lenta, suave, todo mundo a dormir.

A primeira pergunta tinha a ver com a construção do tempo, mas talvez terá sido mais a questão de desconstruir o tempo e desconstruir estigmas sociais?

Não há nenhuma verdade para nenhuma comunidade. As comunidades são feitas de pessoas e como disse, nós fizemos essa sessão de sonhos cada um desejava algumas coisas, coisas diferentes. O que fazemos é ir no mais possível, exequível. As verdades são sempre múltiplas, ainda mais quando muitas vontades têm que convergir para criar uma coisa em comum. Mesmo entre nós, a Filipa e o Sana que falámos mais constantemente porque não vivemos na aldeia, temos visões diferentes e temos forma de achar que chegamos lá também diferente. A diferença não é um problema. A diferença nunca foi um problema. É uma força até quando essa diferença consegue comunicar-se, cria uma força muito mais sólida do que pensar, que é diferente.

O problema da humanidade hoje é isso não queremos cá os árabes porque são diferentes e vêm estragar a nossa cultura, como dizem aqui, por exemplo, em francês. Eu até admiro porque eu costumo dizer; os europeus acham que a sua cultura é superior, é a melhor cultura do mundo. Porque é que estão tão com medo de outro que virem destruir essa cultura superior? Se é tão superior assim, provavelmente deviam ficar contentes que os outros venham cá aprender essa cultura superior.

Essa leitura é europeia?
E essa é a questão. E a verdade é que o conhecimento está muito bitolado pela visão europeia. A nossa ideia é fazer horizontalização dos saberes porque muitas vezes as epistemologias são sempre determinadas cá nas universidades europeias, mesmo por africanos. Nós estudamos cá e enchemos a cabeça toda dessa visão e reproduzimos à nossa maneira lá. Então, enquanto continuamos a falar da universidade como se fosse um universo, vemos que quem controla a universidade, a Europa e o Ocidente e vamos continuar a manter a hegemonia do pensamento europeu ou da visão europeia das coisas. Por isso falamos da diversidade, pluridiversidades. Há várias formas de saberes e várias formas de fazer o saber acontecer ou transmitir os saberes.

Marinho Pina também é contador de histórias, vamos acabar esta entrevista com uma história?

Era uma vez um miúdo que estava sempre a correr porque queria acabar uma casa e não parava para fazer mais nada, só corria para ir buscar lenha e buscar paus e buscar água. Precisava de acabar a casa e sempre que ia a algum sítio conhecia novas pessoas.

-Olha, é preciso de pausa: senta-te aqui connosco.
-Não, eu tenho que acabar a minha casa.

Encontrava pessoas, mas não chegava a conhecer pessoas, porque o que lhe interessava era a sua casa. E depois de muito trabalho e de muita correria, conseguiu ter a sua casa finalmente. Era uma casa maravilhosa, mesmo sólida, com tudo o que era necessário, com tudo o que aprendeu de muitas partes e de gente com quem cruzava e com quem não falava, só tirava. Quando acabou a casa, estava sozinho em casa e queria que fossem visitar a casa, mas nunca teve tempo para criar relações e as outras pessoas. Vamos criar um final feliz. [Todos] acabaram por perdoá-lo.

Por: Lígia ANJOS
Conosaba/rfi.fr/pt

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