[ENTREVISTA_ março 2022] O novo Bastonário da Ordem dos Advogados da Guiné-Bissau, Januário Pedro Correia, criticou duramente a justiça na Guiné-Bissau e afirmou que vai de mal a pior, tendo apontado dedo aos magistrados do Ministério Público e advogados como os principais responsáveis pela situação da desacreditação da justiça.
O advogado fez essas afirmações na entrevista ao Jornal O Democrata para falar das suas prioridades enquanto novo bastonário, dos desafios e mudanças que vai imprimir na Ordem.
“Acho que os advogados que apostaram em mim souberam escolher e foram inteligentes em fazê-lo. A nossa política é pela justiça, organizar a profissão para que os advogados possam sentir-se bem, exercer a profissão com toda a dignidade e preparar os advogados para que saiam bem. A nossa política é permitir que os mais pobres possam ser assistidos por advogados. Um advogado, quando comete um erro pode levar o cliente para prisão. Vamos apostar na formação dos nossos advogados”, disse.
Questionado se abre a possibilidade para dialogar com a Presidência da República e o governo para encontrar uma solução sobre o edifício da Ordem ou se vai manter a via judicial, respondeu que vai respeitar escrupulosamente aquilo que a assembleia-geral dos advogados aprovou há um ano.
“A assembleia-geral é soberana. Na altura não fechou a porta a esse diálogo. É preciso que a Presidência da República manifeste esse interesse também. Acho que a presidência deveria ter assumido outra postura. O Presidente da República é garante da ordem e da estabilidade…tem que trabalhar para garantir a paz social e a paz social vem das coisas básicas. O que aconteceu com a Ordem foi condenado por todo o mundo. O importante é que se ponha a mão na consciência e perceber que isso não ajuda na boa imagem da Guiné-Bissau e o setor da justiça”, assegurou.
O Democrata (OD): Acaba de ser eleito novo Bastonário da Ordem dos Advogados da Guiné-Bissau. Quais são as suas prioridades?
Januário Pedro Correia (JPC): Não me canso de dizer isto. Será a arrumação da casa. Essa arrumação passa necessariamente pela instalação, com toda a dignidade, da Ordem dos Advogados. É verdade que tem uma instalação provisória onde funciona, mas pela natureza do projeto que pretendemos implementar, esse edifício não nos parece o mais adequado. É preciso que a Ordem tenha uma sede própria para permitir a instalação de todos os serviços e órgãos sociais, que desde logo resultam dessa transformação que pretendemos imprimir a nível da Ordem e que decorre da alteração dos seus estatutos. Os estatutos da fundação da Ordem em vigor sofreram algumas transformações. Por exemplo, só para se ter a noção, saímos de antigos estatutos com uma estrutura simples a nível da organização e funcionamento.
Temos Assembleia-geral com três elementos e a direção nacional, principal órgão de gestão da Ordem, com três elementos. Com a aprovação de novos estatutos, passamos a ter, para lá da direção nacional que congrega por aí sete elementos, o Conselho da Ordem, principal órgão de gestão da governança, que tem para além do Bastonário que o preside, nove membros. Temos ainda várias comissões executivas de que não vamos prescindir. Aliás, consideramos essas comissões a nossa prioridade, porque é impensável fazer da Ordem uma organização, senão tivermos a funcionar a comissão executiva da ética e deontologia profissional. É importante que imprimamos disciplina e rigor no exercício da profissão.
Os advogados devem organizar-se bem para que possam ser responsabilizados pela comissão executiva pela sua desorganização. Não vamos perseguir ninguém, mas sim deve haver uma estrutura que no fundo vai controlar as coisas, um braço da Ordem no que tem a ver com a organização e o funcionamento da nossa classe.
Vamos investir nessa primeira fase na organização da casa, na instalação da comissão da ética e da deontologia profissional, da comissão de documentação e de arquivo. Essa comissão nunca funcionou. Houve um ou outro Bastonário que tentou pôr essa comissão a funcionar, mas os então estatutos em vigor acabam por ser a grande ameaça e o fracasso da organização, porque temos em mente uma comissão para criar, mas falta a base legal para a sua criação. Por exemplo, temos a base legal, o regulamento próprio da comissão de acesso à justiça que vamos implementar. É uma atividade que a Ordem faz, mas vamos ampliar o seu âmbito de atuação para que possa cumprir os objetivos traçados no próprio regulamento, que vem reger a sua criação e funcionamento. Também pretendemos instalar a comissão de combate à corrupção, que sempre foi um tema de atualidade, porque a corrupção é um mal que atinge a sociedade e está a corroer o sistema judiciário.
Os advogados não são imunes dessa responsabilidade. Se os advogados são cúmplices? Admito que sim, porque não faz sentido falar da corrupção no sistema judiciário e pôr de lado os advogados. Os juízes ou magistrados fazem corrupção com quem? Quem é o principal intermediário desse mal que afeta negativamente a sociedade e o sistema da justiça?
Temos a consciência disso e vamos trabalhar para combatê-la no exercício da profissão. Vamos expulsar os que não prestam, as frutas podres do sistema. É uma profissão honrosa e como tal devemos merecer a confiança da sociedade e de toda a comunidade jurídica. Num segundo momento, a nossa aposta centrar-se-á, para além do capítulo de arrumação, no controlo e rigor no exercício da profissão.
É o que nos falta. O grande problema que temos é obrigar que os nossos colegas advogados se organizem. É uma profissão que exige, no mínimo, muita tecnicidade e organização para testar a confiança do seu cliente. Não consigo ver alguém a recorrer a um médico debaixo de uma mangueira ou de um cajueiro para se ter consulta médica.
Um médico tem que ter um escritório. Portanto, não podemos admitir os advogados que não têm escritórios. Temos advogados na rua. Os advogados cujos escritórios estão literalmente nas suas pastas diplomáticas.
É todo um mal que temos que combater. Não seria de todo exagerado. Nunca fomos falsos durante o processo eleitoral e dizer coisas que não vamos cumprir. Se não tiver meios, deixa de fazer advocacia e vai procurar outra profissão. Contudo, há sempre saídas. A nível da gestão, é a primeira proposta que vou levar porque está na lei.
Tanto novo estatuto como antigo diz que o advogado tem que se identificar e identificar o seu domicílio profissional que não se confunde com o seu escritório lá de casa ou anexo, mas sim, um local de trabalho que se distingue do seu domicílio ou da sua residência. Sei que há dificuldades, o mercado é exíguo e os problemas que o país enfrenta refletem nos bolsos dos advogados e a questão da morosidade também reflete nas nossas atividades, porque o juiz quando não decide os processos, os advogados não cobram os honorários, o que não é saudável para a nossa advocacia. Repara, o fato de um advogado não ter escritório pode contribuir também para essa morosidade da justiça. Os advogados têm a sua cota parte no processo da morosidade da justiça e dos processos judiciais.
OD: Basicamente, foi o único candidato nesse processo. Algumas vozes criticam o processo que alegam ter sido pouco transparente e antidemocrático. Sente-se confortável para dirigir a organização?
JPC: Estou preparado para assumir a responsabilidade. Todos reportamos ou respondemos pela nossa comissão eleitoral. Nunca vi tanta proatividade numa Assembleia-geral da Ordem dos Advogados da Guiné-Bissau. Há 18 anos que estou inscrito na Ordem, participei sempre na assembleia-geral como estagiário e depois como advogado, mas nunca vi tanto interesse dos colegas numa assembleia. Nesta assembleia, foi aprovado um regulamento eleitoral e foi esse regulamento que se aplicou. Foi um processo suficientemente transparente, porque é um processo simples. Neste momento temos 375 advogados inscritos na Ordem, mas no caderno eleitoral constaram 219 nomes, todos em Bissau. Havia uma única urna no ato de votação como sempre, só que desta vez houve muita afluência.
Na eleição de Basílio Sanca tínhamos pouco mais de trinta inscritos, e só votaram vinte e oito. Eu fui eleito por cento e quarenta e nove votos expressos dos advogados, não obstante toda essa confusão a mistura, que alguém quis trazer ou fazer parecer à volta do processo eleitoral. Nunca fui à imprensa para tentar explicar nada. Ainda que tivesse sido a Assembleia-geral competente para nomear a composição da assembleia, que não foi o caso. Porque não está no regulamento, acha que faz sentido atrasar todo o processo para convocar uma assembleia por causa de uma pessoa? Tínhamos três elementos que preencheram o quórum e o regulamento diz que entre os quatro elementos assume a presidência o mais velho de entre eles.
Não havia a necessidade de o Alex colocar em causa tudo o que conquistou nessa praça com honra, por conta de uma eleição da Ordem. Eu tinha também motivos para desconfiar do Alex, que é do mesmo escritório com Dr. Luís Vaz Martins, que depois apareceu numa lista de outro candidato que até foi admitido na lista provisória. Depois de cometer algumas irregularidades, a Comissão Eleitoral tomou a sua decisão na base do regulamento. Eu podia ter reclamado e dito que um elemento do escritório do presidente… para mim vamos para a eleição, ainda que se arranjasse o irmão da pessoa da outra lista. Para mim era indiferente, porque tinha o meu representante permanente na mesa e não podia fazer nada. A eleição chegava à meta e depois contávamos os votos e ganhava quem ganhasse.
OD: Como pensa dinamizar a Ordem dos Advogados, sobretudo num contexto em que a maior parte dos guineenses não acredita na justiça?
JPC: A Ordem dos Advogados tem que fazer sentir a sua presença. Tem uma componente social muito importante. Dava patrocínio oficioso aos mais carenciados. Agora nós chamamos a isso CAJ – Centro de Acesso à Justiça. Mas o mecanismo com que o CAJ tem funcionado não coloca em causa a possibilidade de a Ordem de dar também diretamente patrocínios. Agora as pessoas vão diretamente ao CAJ apresentar os seus problemas e depois é avaliada a situação económica da pessoa em causa e depois são eventualmente encaminhadas para a Ordem.
Só para se ter a noção, no último exercício, com o apoio do Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (PNUD), recebemos mais de cem processos provenientes só do CAJ, porque é a partir desse trabalho que a Ordem também ganha uma certa visibilidade, defendendo pessoas que não têm meios para pagar a justiça, aliás, é a parte pública da Ordem. Por causa dessa missão de defesa da justiça e da causa social é que fazemos o nosso trabalho, porque a partir da primeira instância regional para cima, ninguém vai pleitear sem advogados, daí que os advogados são peças essenciais na administração da justiça.
OD: A direção cessante, da qual fazia parte, foi fortemente criticada nos últimos tempos. Que estratégia pretende utilizar para corrigir as falhas da antiga direção e reconquistar a confiança dos associados?
JPC: Passei seis anos numa universidade e pensei que tinha concluído tudo, pelo menos aquilo que o meu país estabeleceu, a licenciatura, o mestrado e o doutoramento. Mas o aprendizado é um ato contínuo. Foi uma honra trabalhar com Basílio Sanca. Aprendi com os erros e sucessos dele. Não sei se terão a oportunidade de falar com ele. Teve muitos sucessos, ajudou muito a implantar e a estruturar a Ordem. O meu projeto é procurar unir os colegas. Neste momento, os advogados estão em trincheiras diferentes, por razões de crenças políticas e profissionais, porque a política atingiu toda a sociedade. Os advogados estão praticamente implicados nos processos políticos.
OD: Tem filiação partidária neste momento?
JPC: Não. Neste momento sou apartidário, mas é bom que se diga a verdade. Porque se amanhã forem consultar os documentos no PAIGC vão descobrir que passei pela JAAC. Depois coloquei-me no regime sabático e fui apostar na minha formação e nunca mais voltei. Nem estou a pensar voltar para vida partidária ativa. Neste momento estou focado na gestão da Ordem, a gestão da Ordem é diferente da gestão de uma empresa ou de um escritório. É uma gestão muito particular, sobretudo o momento que estamos a atravessar. É preciso compreender onde é que nós nos encontramos para poder ver qual solução a adotar para resolver o problema, que é unir os advogados.
OD: A questão da sede é tida como um dos maiores desafios para a Ordem dos Advogados. O Sr. Bastonário abre a possibilidade de dialogar com a Presidência da República e o governo para encontrar uma solução ou manter a via judicial para a resolução do diferendo?
JPC: Vou respeitar escrupulosamente aquilo que a assembleia-geral dos advogados aprovou há um ano. A assembleia-geral é soberana. Na altura não fechou a porta para esse diálogo. É preciso que a Presidência da República manifeste esse interesse também. Acho que a presidência deveria ter assumido outra postura. O Presidente da República é garante da ordem e da estabilidade…tem que trabalhar para garantir a paz social e a paz social vem das coisas básicas. O que aconteceu com a Ordem foi condenado por todo o mundo. O importante é que se ponha a mão na consciência e perceber isso não ajuda na boa imagem da Guiné-Bissau e o setor da justiça. Criamos um grupo da UALP – União dos Advogados de Língua Portuguesa.
A Guiné-Bissau é um dos vice-presidentes da organização e a presidência está com Angola. Sempre que nos comunicamos, lá vem essa questão que não se quer calar: o Presidente da República já vos deu a sede? E quando respondemos que ainda não foi solucionado, eles não querem acreditar porque julgam que é demais. Não podemos ver a Ordem à imagem do Bastonário Basílio Sanca, por isso os Estados atribuíram-lhe a natureza da utilidade pública para todos os efeitos, dada a sua missão. Desaparece a Ordem e o advogado, não há justiça nos tribunais. É preciso encetar algum diálogo para resolver essa questão no fórum judicial. Ao invés da indemnização que a Ordem pede ao tribunal, porque não encontrar uma solução.
A assembleia aprovou que a solução fosse encontrada dentro do mecanismo processual. Temos um processo, então podemos solicitar uma audiência conciliatória para ultrapassar este impasse. Acho que a Ordem não sairia a perder, se conseguíssemos todos uma solução razoável para fazer com que a imagem negativa da Guiné-Bissau, que estamos a vender, seja corrigida. Porque não há nada que justifique tudo isso, ainda que a Ordem não pagasse a renda ou tivesse que fazê-lo, tu não chegas e retiras a porta da casa como fazem alguns inquilinos. O pior de tudo isso é que trancaram a porta e ninguém pode ter acesso. A minha toca, todos os mobiliários, os documentos, pertenças do Basílio Sanca e o seu passaporte todos ficaram lá.
OD: O seu antecessor foi muito criticado pela sua ingerência nos assuntos políticos. A sua direção vai afastar-se dos assuntos políticos e sociais ou estará mais engajada na atualidade política?
JPC: Eu tenho a minha missão. Tenho tanta coisa para fazer, que não tenho tempo para fazer política. Isto de Basílio Sanca ter-se ingerido na política não sei responder e quero acreditar que ele saberá responder melhor que eu. Acho que os advogados que apostaram em mim souberam escolher e foram inteligentes em fazê-lo. A nossa política é pela justiça, organizar a profissão para que os advogados possam sentir-se bem, exercer a profissão com toda a dignidade e preparar os advogados para que saiam bem.
A nossa política é permitir que os mais pobres possam ser assistidos pelos advogados. Um advogado, quando comete um erro, pode levar o cliente para a prisão. Vamos apostar na formação dos nossos advogados. Que fique claro que estamos a falar de formação para todos, não apenas para os mais novos como muitos pensam, não. Temos advogados na nossa praça que há 20 anos nem sequer chegaram a ler um manual. O direito está a evoluir e estamos no advento de novas áreas, nomeadamente o ambiente e novas tecnologias. Temos o direito comunitário, da integração sub-regional, da OHADA e da UEMOA que muitos não conhecem. Portanto, é preciso que os advogados se familiarizem com essas áreas, para que possam exercer com toda a dignidade e sapiência.
OD: A justiça na sua globalidade é muito criticada pelos guineenses. Quais são os principais obstáculos à afirmação da justiça na Guiné-Bissau?
JPC: São vários, mas sobretudo a falta de vontade política. Permita-me citar aqui um autor que numa conferência foi muito didático. Imagina numa turma de faculdade de direito perguntar quem são as pessoas que estariam interessadas em vir fazer política na Guiné-Bissau? Não encontrou nenhuma resposta, todos declinaram. Porque o pensamento é que fazer política era tudo uma selva, sinistro ou bandidagem.
Mas a resposta desse senhor fez todos repensarem a sua posição, quando perguntou novamente como é que queriam mudar essa situação, o quadro de coisas diferentes do país onde a maioria dos deputados eram juristas, com políticos que não sabem ler e os deputados a representá-los sem conhecer a lei? Se vocês não se integrarem ao PAIGC, ao PRS, ao MADEM-G 15, PUN…como pensam mudar as cocois? Bom lá está! Estamos a fazer política.
Na altura que se fez essa pergunta, o parlamento só tinha um jurista, Drº Francisco Benante. Recentemente foi aprovado o Orçamento Geral do Estado para o ano económica 2022, mas veja lá o bolo que se reservou para a reforma. Fala-se muito da reforma, mas em termos práticos não se faz nada. Não podemos estar a gizar a nossa reforma na base daquilo que vamos conseguir do PNUD. O PNUD está lá apenas para complementar os esforços internos do Governo ou do Estado. Vamos à reforma, mas o que é que se reservou para fazer a reforma do sistema judiciário no seu todo. É a questão da soberania económica do Estado. O PNUD apoia o patrocínio oficioso, o acesso à justiça.
No primeiro trimestre disponibilizaram dez milhões. Será que o Estado da Guiné-Bissau não tem esse dinheiro? Apenas a receita do cofre geral da justiça e do Ministério da Justiça dá para cobrir isso. Deixamos esses macro financiamentos que exigem enormes investimentos para o PNUD. O Estado tem que assumir a sua responsabilidade.
Há muitos anos que os nossos tribunais funcionam sem juízes. Para ter acesso aos tribunais, as pessoas são obrigadas a deslocarem-se quilómetros e quilómetros. Até hoje a polícia judiciária não conseguiu se instalar em todas as grandes cidades da Guiné-Bissau.
O tribunal de relação, por exemplo, não tem juízes e os recursos que os advogados estão a interpor para lá ficam anos sem qualquer solução. Muitas pessoas abandonam casos na justiça, porque não há solução. Tenho um caso de um empresário português que decidiu voltar por não ter tido solução de um caso no tribunal, mas é um investimento de vulto que se perde. Essas atitudes afetam a sociedade e grandes investidores.
OD: Tem havido críticas quase em todos os quadrantes da sociedade guineense à morosidade da justiça. Enquanto advogado, a que se deve essa morosidade?
JPC: Vou começar pela casa, com os advogados que não têm escritório. Os oficiais da justiça reclamam muito porque tem sido difícil notificar os advogados e quando é assim, acarreta a demora até de um mês. Se combatermos a nossa parte, a parte do Estado será muito simples. Nada adianta mudar as leis ou encurtar os prazos. Temos que ter uma forte estrutura inspectiva. A inspeção dos tribunais tem que funcionar com uma estrutura séria, consistente e consolidada. As inspecções judiciais e do Ministério Público não funcionam. A inspeção é que vai andar em acima dos juízes. Primeiro, controla os juízes e os magistrados que passam um ano sem proferir sequer uma sentença ou acusação.
Uma das nossas apostas é a criação de um serviço de arquivos e de documentação e estatística, para dar um braço ao Estado e ajudá-lo a controlar quantos processos entram num determinado tribunal, quantos são arquivados, quantos são resolvidos, os processos na fase de instrução e articulados e depois mostramos o índice a média ao Estado, que terá a capacidade de exigir a produtividade aos tribunais e aos juízes. Porque se um juiz recebe em média cem processos por ano, tem que resolver pelo menos metade, independentemente de outras situações que podem acontecer, como é o caso da pandemia da Covid-19. É urgente olhar para a lei que cria a inspeção dos tribunais, como funciona a inspeção e como os juízes são controlados para podermos combater a morosidade na execução dos processos.
OD: Os magistrados são acusados de serem os responsáveis pela má administração da justiça. Partilha essa posição com o Presidente da República, que tem criticado também os magistrados?
JPC: A justiça está de mal a pior. Os principais atores, magistrados do Ministério Público e advogados, são todos responsáveis. Mas há sempre uma solução. Lá está, nós queremos sempre impulsionar a implementação e o efectivo funcionamento do Conselho Nacional de Concertação e de Consulta, mas que não tem funcionado. Nesse conselho têm acento a Ministra da Justiça, um representante do poder judicial, neste caso, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o Procurador-Geral da República e o Bastonário da Ordem dos Advogados, que vão discutir vários problemas da justiça, sobretudo a reforma necessária, as condições materiais para fomentar a justiça e os estrangulamentos no setor. Por isso elegemos como uma das prioridades o diálogo interinstitucional.
OD: Trabalhou com o antigo bastonário, Basílio Sanca. O que tem de diferente do Basílio Sanca?
JPC: O Basílio Sanca é mais interventivo e sempre tem o sangue a ferver. Eu sou mais calmo. Prefiro que outra pessoa faça essa comparação. Confesso que Basílio Sanca tem as suas virtudes, é uma boa pessoa de coração. É muito direto e contundente nas suas coisas e muitas vezes não sai bem por ser um homem crítico. É crítico ao país e em tudo e não sai satisfeito com nada. Num dos episódios em que não nos entendemos, afirmou que há corrupção no sistema judiciário e que os juízes vendem despachos. Se os juízes vendem os despachos, quem os compra? Só para facilitar, são os advogados. São eles que fazem a proposta de compra dos despachos. É verdade que existe corrupção no sistema. Vamos todos encontrar um mecanismo para combatê-la. Todos os intervenientes devem trabalhar para mudar as coisas. Mas uma cota parte compete ao Estado.
OD: Em 2021, enquanto vice bastonário da Ordem dos Advogados, convidou os intervenientes no setor judiciário a celebrarem um pacto que definisse os princípios básicos de atuação dos magistrados e advogados no país. Continua a defender a mesma tese?
JPC: Chamei isso de pacto nacional da justiça. Porque se até hoje Portugal, onde nos inspiramos, defende essa ideia, um pacto para resolver os estrangulamentos na justiça, porque não avançarmos com essa ideia. Aliás, houve esse pato. Embora o pacto que nós aprovamos partisse de outros pressupostos. É um compromisso, um convénio firmado entre a Ordem, que representa os advogados, o Supremo Tribunal de Justiça, a Procuradoria-Geral da República, o Governo através da ministra da justiça, o Parlamento e a sociedade civil. Vamos sentar à mesa para discutir os problemas do setor da justiça e como combatê-los.
Por exemplo, o acesso à justiça é um problema que afeta esse setor. Temos um outro problema que é a segurança jurídica. Não se sabe quais são as legislações que estão em vigor, sobretudo com essa confusão da integração comunitária. O Estado precisa clarificar o regime jurídico através de publicações, de coletâneas e a realização de eventos, quiçá, implicava a Ordem dos advogados. Vamos combater a corrupção e endurecer as penas, criar uma estrutura combativa forte, formar inspetores do Estado a nível do Parlamento, da Ordem… para combater a corrupção.
OD: Será que esse pacto que se propõe ao setor pode prevenir a corrupção judiciária, promover maior produtividade, controlar e administrar melhor a justiça na Guiné-Bissau?
JPC: É o que se pretende. Se me perguntasse a forma de combater tudo isso e garantir a maior produtividade, diria que vamos alterar o Código do Processo Civil (CPC), mas quando li umas dicas do autor que há pouco referi, desacelerei. Desacelerei, porque estaríamos a perder tempo. Antes os juízes tinham trinta dias para proferir uma sentença ou acórdão, quinze dias para produzir um despacho. Mas a lei diz que na ausência de prazo são cinco dias. É o que diz o CPC e nós vamos reduzir isso para metade? Será que os juízes vão conseguir cumprir esse prazo?
Quando os juízes ou magistrados incumprem, não são sancionados, mas se forem os advogados significa a perda do processo. Um juiz falta a audiência não é sancionado e nem paga multa, portanto o ponto principal é forçar o Estado a criar fortes estruturas inspetvas a nível das magistraturas. O Estado deveria estar a subvencionar a Ordem pelo serviço que presta. A Ordem paga os advogados para patrocinar oficiosamente os clientes, mas já há alguns anos que isso não tem funcionado. Porque há seis anos com Basílio Sanca nunca recebemos. O Domingos Quadé também nunca recebeu e duvido que os Bastonários Armando Mango e Carlos Pinto Pereira tenham recebido alguma subvenção do Estado nesse sentido. Vamos acionar mecanismos para exigir aquilo que é nosso por direito, porque isso pode ajudar muito para que a Ordem possa fazer o seu trabalho para o bem da justiça guineense.
Por: Filomeno Sambú
Foto: Marcelo Na Ritche
Conosaba/odemocratagb
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