A venda de bolsas de estudos é um esquema de corrupção que vigora no Ministério da Educação Nacional. Os preços oscilam de acordo com o ranking do nível do ensino internacional dos países que oferecem as bolsas. De acordo com as informações que conseguimos apurar, o valor cobrado situa-se entre 700.000 e 1.000.000 de Francos CFA para bolsas para Portugal, Rússia, China e o Brasil, enquanto as bolsas para os países africanos, em particular Marrocos e Argélia são cobradas a um montante de 500.000 Francos CFA.
Este negócio ilegal criou uma crise a nível da cooperação bilateral entre a Guiné-Bissau e os países que oferecem as bolsas, sobretudo com Portugal, Rússia, República Popular da China e o Brasil. Além disso, também provocou dificuldades de relacionamento com algumas entidades parceiras de desenvolvimento que, segundo as nossas fontes, mostram-se indignadas com a prática.
A venda de bolsas de estudo, permitindo a concessão de programas de apoio para a frequência universitária no estrangeiro a estudantes menos preparados, acabou por gerar um sentimento de frustração no seio dos países financiadores, levando-os a adotar um modelo diferente de cooperação nos domínios do ensino superior, através da criação de estruturas específicas para tratar diretamente da gestão das bolsas atribuídas à Guiné-Bissau.
A maioria desses países, com representações diplomáticas em Bissau, decidiu retirar a gestão da bolsa ao Ministério da Educação, entregando-a às respetivas embaixadas. Noutros casos, como a Rússia, passaram a gestão à estrutura local da UNESCO.
Mutaro da Silva, que esteve à frente da Confederação Nacional das Associações Juvenis da Guiné-Bissau (CONAEGUIB), entre 2011 e 2019, admitiu, numa entrevista quando era ainda presidente desta organização, que lidou com várias denúncias de corrupção relacionadas ao tráfico de bolsas de estudo, mas em todas elas os denunciantes tiveram dificuldades em apresentar provas materiais dos factos.
ESQUEMA CONTROLADO POR FUNCIONÁRIOS DO MINISTÉRIO
O diretor-geral do Ensino Superior, Augusto Barreto, revelou durante uma entrevista que a cooperação entre a Guiné-Bissau e Portugal ficou azedada a partir de 2015, devido àquilo que considera ser uma crescente “onda de corrupção” que supostamente se verifica naquela instituição pública do setor de ensino. O fato, segundo ele, obrigou, na altura, as autoridades portuguesas a ordenarem a retirada do Ministério da Educação da Guiné-Bissau da gestão de bolsas de estudo destinadas a estudantes guineenses, à luz da cooperação neste domínio entre os dois países.
Augusto Barreto assegurou que a decisão das autoridades portuguesas deveu-se à quebra de confiança com os responsáveis do Ministério da Educação, sobretudo no que se refere à ausência de transparência na seleção de bolseiros. Explicou que antes de retirar a gestão de bolsas de estudo do Ministério da Educação, Portugal apresentou uma proposta de compromisso que acabaria por ser descartada pelas autoridades guineenses.
“A proposta visava restabelecer um processo de concurso público para atribuição de bolsas de estudo através de testes escritos, considerados mais objetivos comparativamente com o concurso documental que vigorava”, explicou o diretor-geral do Ensino Superior.
“A divergência entre as partes prendia-se com as metodologias para materializar a ideia. A parte portuguesa propunha a realização de dois exames. O Ministério da Educação assumiria o processo preliminar, tendo a responsabilidade de anunciar a existência de bolsas, receber candidaturas e realizar o primeiro teste. Caberia depois a parte portuguesa a responsabilidade de conduzir o processo final que culminaria com a filtragem dos candidatos pré-selecionados através de mais um teste”, detalhou.
O responsável lembrou que o modelo apresentado pelas autoridades portuguesas foi liminarmente rejeitado pela Secretária-geral do Ministério da Educação, que dirigia na altura a comissão de gestão de bolsas de estudo atribuídas à Guiné-Bissau. Augusto Barreto enfatizou que na ausência de entendimento e de estabelecer uma relação de confiança entre as partes, as autoridades portuguesas decidiram assumir a gestão de bolsas através da sua embaixada em Bissau e do Instituto Camões.
O mesmo tipo de problema verificou-se com as bolsas de estudo oferecidas pela Rússia. As constantes suspeitas sobre práticas de corrupção e falta de transparência no processo da seleção de bolseiros levaram as autoridades russas a retirar ao Ministério da Educação a tutela e da gestão de bolsas de estudo, transferindo-a para a Comissão Nacional da UNESCO, uma estrutura anexa ao Ministério da Educação. Questionado sobre esta decisão, o diretor-geral do Ensino Superior disse que descoche as razões de fundo, foi um problema herdado que está a tentar compreender.
Sobre a transferência da gestão de bolsa de estudo de Ministério da Educação para a Comissão do UNIESCO, uma fonte ligada ao processo afirmou que o termo de referência foi bem claro: “A retirada de tutela da gestão de bolsas de estudo do Ministério da Educação deveu-se à necessidade de promover uma maior transparência ao processo”. E vincou: “Isso significa que a preocupação das autoridades russas era muito semelhante à preocupação das autoridades portuguesas. Essa situação descredibiliza o Ministério da Educação e, consequentemente, a Guiné-Bissau”.
A mesma fonte afirmou que o negócio de bolsas de estudo é “supostamente” operacionalizado por pessoas de fora, mas essas pessoas são recrutadas por funcionários que estão ligados ao processo de gestão de bolsas. Segundo a fonte, os funcionários procuram pessoas de fora do ministério para dar a cara pelo negócio, com o objetivo de se afastarem de eventuais suspeitas que possam ser levantadas, caso algo desse errado.
“Tudo indica que os funcionários ligados à comissão de bolsas estão envolvidos nesta suposta rede de tráfico de bolsas de estudo”, frisou para de seguida recordar que em 2018, deram entrada na Direção-Geral do Ensino Superior dois processos do Tribunal Regional de Bissau, abertos com base numa denúncia contra um determinado grupo sobre a venda de uma bolsa de estudo, mas que o processo não foi levado até ao fim e o candidato ficou a “ver a bolsa por um canudo”.
O responsável frisou que a vítima decidiu apresentar queixa na justiça precisamente, porque “o negócio não se concretizou”. Em consequência, o Ministério decidiu abrir uma investigação interna na sequência dessa queixa-crime apresentada pela vítima, de forma a apurar a veracidade dos factos, mas não conseguiu confirmar as informações denunciadas.
“O nome que foi usado pelo indivíduo envolvido no esquema de tráfico e que se apresentou como funcionário do Ministério da Educação não correspondia a nenhum dos colaboradores da instituição, pelo que não foi possível apurar responsabilidades”, explicou Augusto Barreto, admitindo a possibilidade de existirem mais casos do género, mas que não são conhecidos.
A Direção-Geral do Ensino Superior criou, entretanto, quatro subcomissões com o intuito de conferir maior transparência ao processo, designadamente: a subcomissão de elaboração do regulamento de testes; de correção de testes; de introdução dos dados e de lançamento das notas por via informática; e a subcomissão de controlo e verificação, para a seleção dos candidatos à bolsa de Marrocos em 2019.
Em agosto de 2019 foram presos dois suspeitos envolvidos no tráfico de bolsas de estudo. Um deles, Aliu Turé, provou-se ser funcionário do Ministério da Educação. A rede foi desmantelada através desse novo sistema de controlo e verificação da seleção de candidatos às bolsas, montado pela Direção-Geral do Ensino Superior e a secretaria de estado de Ensino Superior que supervisionaram o processo.
GOVERNO INDIGNADO COM A TRANSFERÊNCIA DE BOLSAS PARA AS EMBAIXADAS
O Governo guineense sentiu-se indignado com o facto de os países fornecedores de bolsas de estudo terem passado a gestão dos processos para as suas respetivas representações diplomáticas. Por outro lado, de acordo com uma fonte do Ministério da Educação Nacional, as autoridades nacionais reconhecem a falta de transparência que existia na gestão de bolsas por parte dos serviços encarregues das mesmas.
Garcia Bideta, Secretário de Estado do Ensino Superior do primeiro Governo da 10ª legislatura e que atualmente desempenha a mesma função, admitiu na entrevista que o grau de desconfiança era muito alto e isto acontecia tanto da parte dos parceiros internacionais como a nível interno. Por isso, segundo ele, o ministério assumiu diretamente a gestão dos processos de bolsas e adotou “medidas extremas” que visam garantir a transparência do processo: depois de realizadas pelos candidatos, as provas escritas passaram a ser codificadas e passaram a ser entregues à subcomissão de testes e correção dessa forma, sem a identificação de nomes de estudantes.
“Uma vez corrigidas, as provas são enviadas para a subcomissão da informática, responsável pelo lançamento de nomes com as notas correspondentes. Mas antes da sua introdução na base de dados e o lançamento das notas, todas as provas são fotocopiadas”, explicou o governante.
“Foi nessa subcomissão que se verificou uma tentativa de fraude. Depois da divulgação dos resultados, a subcomissão de verificação notou de imediato as alterações nas notas de vários estudantes concorrentes, porque os resultados fornecidos pela subcomissão de correção eram diferentes dos resultados apresentados pelos técnicos informáticos à subcomissão de verificação”.
De acordo com o Secretário de Estado, os técnicos informáticos que faziam parte da subcomissão de introdução dos dados foram questionados sobre o sucedido e alegaram que as notas eram diferentes devido a erros no processo de introdução dos dados. O ministério acabou por pedir a colaboração de familiares de estudantes candidatos, apelando a que denunciassem quaisquer tentativas de negócio com bolsas de estudo.
“Foi com base na colaboração de familiares com a operação desencadeada pelo ministério que foram presos os dois suspeitos”, contou Bideta. As autoridades contaram com a ajuda da mãe de um dos candidatos que entregou o número de telemóvel e o endereço da pessoa que terá contatado o seu filho. O indivíduo em questão, Sana Bangura, foi recrutado por funcionários do ministério ligados à comissão de bolsas para negociar com os familiares de estudantes.
O governante explicou que foi a partir daquele momento que a Polícia Judiciária (PJ) foi acionada para investigar o caso. Acrescentou que a investigação policial contou com a colaboração de um membro da família (tio) de Spencer Embaló, antigo secretário de Estado da Cultura, que fez a denúncia sobre a proposta recebida daquele suspeito.
O funcionário do ministério que acabou por ser preso por causa de tal esquema, Aliu Turé, foi contatado para falar sobre o assunto, mas recusou-se a prestar quaisquer declarações a nossa reportagem, justificando o seu silêncio com as orientações dadas pelo seu advogado.
Aliu Turé esteve preso durante mais de uma semana pela PJ e, além de um processo judicial, é alvo de um processo disciplinar no Ministério da Educação Nacional. Mas, não obstante ser suspeito neste esquema, acabou por retomar as suas atividades laborais naquela instituição governamental, onde exerce funções de técnico informático. A mesma postura de silêncio foi assumida por Sana Bangura, recrutado pelos funcionários do Ministério para gerir o “dossier de negócios” de bolsas de estudo.
Recordou que, entre 2011 e 2014, o processo de seleção de bolseiros para diferentes países carecia, a seu ver, de transparência porque o único critério para a classificação de candidatos era a média das notas que constavam nos certificados de habilitações. Para Mutaro da Silva, esse formato de concurso documental usado para as bolsas de estudo contribuiu para a proliferação da corrupção, porque “era fácil falsificar os certificados”.
O antigo líder da organização estudantil recordou o caso de Júlio César Delgado, secretário-geral do Ministério da Educação, que foi detido pela Polícia Judiciária a 13 de maio de 2015, no âmbito de um processo relacionado precisamente com a falsificação de certificados. Esse caso foi denunciado por um grupo de professores do Liceu Nacional Kwame N’Krumah, onde o Delgado chegou a exercer as funções de diretor.
Segundo Mutaro da Silva, alguns técnicos do Ministério de Educação estão envolvidos em negócios da venda de bolsas de estudo, bem como na falsificação de certificados. Revelou a prática do nepotismo da parte dos membros da comissão de bolsas de estudo e por parte de elementos dos partidos políticos no poder.
O ex-presidente da CONAEGUIB garantiu que quem beneficia com este esquema de bolsas são familiares dessas pessoas, “elites sociais e políticas”.
Interrogado sobre a estratégia para assegurar maior transparência no processo, Mutaro da Silva defendeu que o executivo deve criar condições que permitam haver uma igualdade de oportunidades no acesso às bolsas de estudo para todos os estudantes guineenses provenientes de diferentes regiões do país.
“Isto passa pela criação de um sítio do Ministério da Educação na Internet que proporcione o acesso à informação a todos os interessados. A seleção deve fundamentar-se em critérios de competência e com base em testes escritos”, esclareceu o antigo dirigente estudantil. Na sua opinião, não há dúvidas que a falta de transparência no processo de seleção de bolseiros descredibilizou o Estado guineense perante os parceiros bilaterais, sobretudo perante os governos da Rússia e de Portugal.
EMBAIXADA PORTUGUESA DEFENDE GESTÃO CONJUNTA DE BOLSAS
Contatado para clarificar esta polémica sobre a gestão de bolsas de estudo concedidas pelo governo português à Guiné-Bissau e assumida atualmente pela Embaixada de Portugal, o adido de cooperação da embaixada, António Nunes, explicou que a decisão de passar a gerir o processo visou apenas garantir uma maior segurança e transparência. Durante uma entrevista, António Nunes disse desconhecer os motivos de fundo que levaram a retirada da gestão de bolsas de estudo do Ministério da Educação, tendo admitido que talvez a retirada esteja ligada à constante instabilidade política vivida no país.
“O júri da seleção de bolseiros é constituído por elementos da embaixada e do Ministério de Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau”, contou o adido.
“Atualmente, Portugal disponibiliza 60 bolsas internas de licenciatura para estudantes guineenses. A primeira triagem é feita pelas faculdades públicas, depois são convocados dois técnicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros guineense e da Embaixada de Portugal para filtrar a seleção final de candidatos. A Guiné-Bissau beneficia ainda de 33 bolsas externas, das quais, 22 para a licenciatura, seis para o mestrado e cinco para o doutoramento”, notou.
António Nunes esclareceu que, em Bissau, recebem instruções diretas de Portugal sobre a condução dos processos e que a mesma se baseia, na realidade, apenas no cumprimento de regulamentos. Assegurou ainda que não existe nenhum conflito entre a Embaixada de Portugal e o Ministério da Educação Nacional na Guiné-Bissau, aproveitando para elogiar a qualidade dos estudantes guineenses em Portugal. Defendeu, por isso, a necessidade de haver uma gestão conjunta dos processos da seleção de bolseiros entre a Embaixada de Portugal e aquele ministério.
Ainda sobre a venda de bolsas de estudo, o presidente de Associação dos Pais e Encarregados de Educação, Armando Correia Landim, apontou o dedo aos políticos em geral, bem como aos funcionários do Ministério da Educação e inclusive aos militares, acusando-os de serem os principais beneficiários deste esquema de corrupção. Defendeu que o critério mais adequado para a atribuição de bolsas de estudo é o concurso através de testes escritos, propondo que seja aprovada uma lei de quotas para a distribuição de bolsas às diferentes regiões do país, com o objetivo de garantir a inclusão e equidade no processo da seleção. Correia Landim disse também que os pais e encarregados de educação são cúmplices nos negócios de bolsas de estudo. “Só há um vendedor, se há um comprador”, sublinhou.
Este trabalho foi apoiado por uma bolsa de jornalismo de investigação atribuída pelo Consórcio Media Inovação da Comunicação Social da Guiné-Bissau (CMICS), com o apoio financeiro do Fundo das Nações para a Consolidação da Paz no âmbito do projeto “Impulsionando o setor dos média para maior paz e estabilidade na Guiné-Bissau”, coordenado pelo Escritório Integrado das Nações Unidas para a Consolidação da paz na Guiné-Bissau (UNIOGBIS) e programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A ONU não interfere na redação do conteúdo.
Por: Diamantino D. Lopes
Foto: O Democrata
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