sábado, 18 de abril de 2020

"A GUINÉ-BISSAU E OS DESAFIOS DA PANDEMIA DE COVID-19" - DR. HANS DABÓ, MÉDICO PNEUMOLOGISTA


A pandemia de COVID-19, causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV 2), teve início na cidade de Wuhan (província chinesa de Hubei), em dezembro de 2019. O primeiro caso relatado em África foi no Egipto a 14 de fevereiro 2020. A Guiné-Bissau, por sua vez, anunciou os seus dois primeiros casos a 25 de março de 2020.

Com a declaração de pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) a 11 de março de 2020, o mundo foi sacudido por uma onda de choque. Para além de milhares de vidas ceifadas em todo mundo até ao presente momento, a doença plantou a semente do medo no coração de homens e mulheres, em particular, daqueles que já em si carregam o peso da luta pela sobrevivência diária, como é o caso do povo guineense.

Perante este desafio que todos enfrentamos, o medo e o pânico podem ter um efeito catastrófico na nossa capacidade de pensar com clareza e de agir em conformidade.

Neste cenário de incertezas, têm sido verificados diferentes comportamentos em todo mundo face ao problema, e o nosso país não é exceção. Temos observado comportamentos tão extremos como o pânico, a descrença, explicações sobrenaturais, entre outros.
Enquanto guineense e profissional de saúde, sinto-me na obrigação de trazer alguns esclarecimentos e provocar algumas reflexões.
Para esclarecer aqueles que ainda são consumidos pela dúvida, começo por afirmar que de facto este vírus (SARS-CoV 2) é uma realidade, e que provoca uma doença respiratória (COVID-19) que pode ser grave e fatal. Além do mais, a doença pode afetar todos os indivíduos, sem exceção, seja qual for a sua idade, género, raça, crenças religiosas, estatuto socioeconómico ou cultural. Tem uma taxa de mortalidade global que ronda os 3.4%.
É inegável que este é um desafio desproporcional à nossa capacidade de resposta, pois acarreta um peso extra ao já deficitário sistema de saúde do país. Torna-se, desta forma, importante usarmos todas as ferramentas à nossa disposição para construirmos o melhor plano possível capaz de minimizar o impacto desta pandemia no nosso país. No final de tudo, o país deve continuar a existir com a menor sequela possível, nomeadamente socioeconómica.

Na elaboração de um plano de combate a esta pandemia, deve ser considerada uma abordagem multidimensional do problema, integrando vários atores de reconhecido mérito profissional (profissionais de saúde, sociólogos, juristas, antropólogos, economistas, políticos...), para acautelar que as decisões tomadas sejam as mais justas e equilibradas, consubstanciadas nas melhores informações técnico-científicas presentemente disponíveis.
Não podemos fugir da nossa realidade. É a partir dela que temos que construir soluções, mesmo que isso implique confrontarmo-nos com decisões difíceis. Se assim não for, corremos o risco de, por mais que tenhamos boas intenções, criar uma situação ainda mais catastrófica do que o próprio impacto da pandemia em si, capaz de uma repercussão mais dramática na vida social e económica da nossa população.

Atualmente não existe nenhum tratamento curativo ou vacina contra o vírus SARS-CoV 2. Nesse sentido, a estratégia adotada pela maioria dos países, é a de prevenção e controlo da infeção, de forma a conter a sua rápida propagação, e assim não sobrecarregar os sistemas de saúde, para que estes possam dar respostas adequadas dentro das suas limitações.

Devido à fraca capacidade de resposta do nosso sistema de saúde, esta estratégia provavelmente é a mais assertiva para a Guiné-Bissau.

O “confinamento social”, que tem sido amplamente adotado em todo mundo, é de facto, em teoria, bastante eficaz. No entanto, quando aplicado de forma desajustada, principalmente prolongado no tempo, pode ter efeitos catastróficos, sobretudo no domínio socioeconómico. Para além disso, e nas circunstâncias atuais, não dispomos de dados científicos que ajudem a estabelecer um horizonte temporal para a aplicação destas medidas. Dito isto, podem ser necessários vários meses até conseguirmos controlar a pandemia.

Sendo assim, torna-se evidente que tais medidas devam ser implementadas com cautela e de forma proporcional, para que não tenham um efeito perverso. É lógico que num país como a Guiné-Bissau, com uma economia frágil, dependente de setores como o pequeno comércio, agricultura de subsistência e pesca, a implementação dessas medidas, de forma indiscriminada e por um período longo, torna-se irrealista. Caso a façamos, podemos estar a empurrar uma boa parte da população para o lado da pobreza extrema e um sofrimento agonizante.

Olhemos para algumas informações que a ciência nos dá sobre o vírus SARS-CoV 2 e a doença COVID-19, para que nos sirvam de guia.
·        - Sabemos até então que o vírus se transmite por contato com as gotículas libertadas através da via respiratória de indivíduos infetados pela tosse ou espirro, que podem entrar diretamente pela boca, nariz ou olhos das pessoas próximas, ou ainda, pelo contato das mãos com superfícies infetadas que depois são levadas essas mesmas mucosas;

·         - Existe ainda evidência de que indivíduos assintomáticos podem transmitir a doença;

·       -  Baseando-se na experiência chinesa, cerca de 80% dos casos apresentam uma doença ligeira (sem pneumonia), e os restantes 20% podem desenvolver uma doença grave (pneumonia) com necessidade de cuidados hospitalares. Embora os números oscilem, até 5% dos doentes podem necessitar de admissão numa Unidade de Cuidados Intensivos (UCI);
·       - O principal fator de risco para a gravidade da doença é a idade avançada (geralmente acima de 65 anos). Outros fatores de risco incluem a presença de comorbilidades (doenças crónicas) como a hipertensão arterial, a diabetes, obesidade, doenças cardíacas, respiratórias, imunodepressoras e oncológicas;
·        -  Os dados apontam ainda para um comportamento relativamente “benigno” da doença em crianças, embora os dados sejam escassos, principalmente em crianças em idades precoces;
·        - Apesar de os dados serem conflituantes, parece que pode haver um efeito negativo na proliferação do vírus em regiões de altas temperaturas e humidade;

·        - Um fator perturbador, porém, é o facto de o vírus sofrer mutações, que podem influenciar a sua virulência e capacidade de transmissão, o que impossibilita prever cenários futuros.

Dito isto, conclui-se ser fundamental a integração de dados sociodemográficos e geográficos do nosso país na elaboração de um modelo epidemiológico do comportamento da doença no nosso território. Só dessa maneira podemos tomar as melhores decisões, que sirvam os melhores interesses da nossa população.

Antes de terminar, deixo algumas reflexões sobre eventuais estratégias que poderiam ser adotadas num plano de ação contra esta pandemia:
1 1Centrar os esforços e os recursos limitados na contenção da pandemia através de uma estratégia de prevenção e controlo de infeção que seja realista, equilibrada e justa, tendo em conta o comportamento da doença (elencados anteriormente), aproveitando o facto de ainda não se verificar a transmissão comunitária da doença; aqui se destacam medidas de rastreio ativo dos contactos com casos de doença, distanciamento físico e social, restrições de viagens, etc.;
2- Encontrar soluções que visam lidar com os cerca de 80% dos casos de doença leve, isto é, doentes pouco sintomáticos (ou assintomáticos), que podem teoricamente ser tratados e vigiados no domicílio, mas que constituem um elevado potencial de disseminação da doença na comunidade. Aqui importa equacionar medidas que visam afastar o doente da sua família e comunidade, preferencialmente de forma voluntária (ex. internamento em unidades específicas para doentes não graves);
3  3Investir de forma criteriosa nos escassos recursos disponíveis para tratar os 15% dos doentes que podem ser tratados numa enfermaria regular. É aqui que podemos salvar vidas! Mas isso implica um investimento na formação intensiva dos técnicos de saúde relativamente a gestão de doentes com COVID-19 e no fornecimento de materiais e equipamentos adequados para o efeito (ex. equipamentos de proteção individual, oxigénio, alguns fármacos como a cloroquina/hidroxicloroquina e antibióticos, e eventualmente equipamentos de suporte ventilatório não invasivo para ventilação mecânica não invasiva e oxigénio de alto fluxo em condições bem definidas). Tudo isto está ao nosso alcance, se houver um grande esforço coletivo do governo, seus parceiros e os profissionais de saúde;
  4Não existe na Guiné-Bissau uma UCI com suporte ventilatório invasivo, nem recursos humanos treinados para a gestão de doentes tão complexos e graves como estes. Por mais que nos custe, temos que aceitar este facto inegável: neste momento não dispomos de condições para oferecer um tratamento tão diferenciado quanto necessário aos restantes 5% dos doentes. Nestes casos, deverá ser proporcionado o melhor tratamento médico disponível localmente, que inclua também os cuidados de conforto em fim de vida;

5 5 Proteção dos escassos recursos humanos de profissionais de saúde de que o país goza, por duas razões: por um lado, para não se infetarem, e com isso perder este recurso valioso; e por outro, para não serem eles mesmos a fonte de disseminação da doença.

O desafio é colossal do ponto de vista de gestão estratégica.  Mas seja qual for a estratégia que adotemos, tem que ter necessariamente um forte suporte científico e ter em consideração elementos fundamentais da nossa realidade. Devemos evitar a todo custo medidas precipitadas e populistas, por força de pressões internas ou externas, para não criar ainda mais feridas no frágil tecido social e económico do nosso país.

Por fim, apesar de ser um homem de ciência, reconheço que o momento é de incertezas, e por isso mesmo, cada um pode e deve buscar força e ajuda na sua espiritualidade, mas sem ignorar as evidências científicas.


Porto, 18 de abril de 2020

Hans Dabó
(Médico Pneumologista)

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