"Hoje em dia, o aparelho de Estado na Guiné-Bissau está completamente retalhado e capturado por interesses pessoais
Carlos Lopes garante que não tem ambições políticas, prefere ajudar o seu país “de forma discreta”, mas não deixa de criticar o actual Presidente José Mário Vaz: “Será que o preço para acabar um mandato é fazer todas as asneiras que foram feitas?”
Estes cinco anos foram anos perdidos para a Guiné-Bissau?
A Guiné-Bissau vive numa espécie de crise intensa provocada por três características recorrentes. Em primeiro, não tem uma liderança política comprometida com a transformação, e quando existem indivíduos que tentam fazer uma transformação económica mais profunda são isolados, por vezes decapitados.
O segundo problema é que a Guiné-Bissau tem um défice de educação mais profundo do que a maioria africana. Isto acaba por criar uma situação em que é muito fácil a manipulação política. O terceiro problema é que o país embirrou que o seu futuro é a ajuda ao desenvolvimento, quando o país tem um potencial gigantesco para ser uma pérola.
A Guiné-Bissau devia ser um campeão do verde — tem zonas de mangal que são únicas no mundo, uma concentração de reprodução haliêutica ligada ao facto de serem ilhas e estarem próximas do continente, tem mais ilhas (83) do que qualquer outro país africano, tem os únicos hipopótamos de água salgada, quatro das seis espécies de tartarugas marinhas reproduzem-se no seu território, estacionamento de aves em migração em quantidade gigantesca, ostras de mangal únicas.
O potencial para a pesca desportiva está acima de qualquer país da costa ocidental africana.
A Guiné-Bissau pode viver de uma série de características da sua biodiversidade. Somos uma espécie de Seychelles a quatro horas de voo da Europa.
E a castanha-de-caju?
A castanha-de-caju é um terror, destrói o meio ambiente. É contraproducente para o país e transformou-se numa tábua de salvação porque é colecta. Fomos para o estádio primário da actividade económica.
O facto de os militares não terem intervindo nesta última crise política é um bom sinal?
Eu acho que os militares intervêm sempre, mas aprenderam a intervir de forma sofisticada.
José Mário Vaz, no seu discurso de final de mandato, a 23 de Junho, congratulou-se por ser o primeiro Presidente da Guiné-Bissau a terminar o seu mandato, tendo em conta a crise política permanente que marcou os seus cinco anos no poder, acha que tem razões para se entusiasmar com esse facto?
Será que o preço para acabar um mandato é fazer todas as asneiras que foram feitas? Se o balanço de terminar um mandato é ter um sem-número de ministros e primeiros-ministros e de confusões e de intervenções internacionais e de mediações e de presença militar estrangeira, se é esse o preço para terminar o mandato, acho que é um preço muito elevado.
O antigo Presidente nigeriano Olusegun Obasanjo referiu que o Presidente guineense não estava contente com os poderes que a Constituição dava ao chefe de Estado. O problema da Guiné-Bissau é a Constituição?
Uma parte do problema da Guiné-Bissau é a Constituição, que não está adaptada à realidade. Desde que está em vigor não foi capaz de nos tirar das crises. Temos um problema e esse problema tem de ser resolvido. A Constituição está mal redigida em aspectos cruciais, por isso existem interpretações várias.
É uma Constituição decalcada da Constituição portuguesa…
O problema é que é decalcada da Constituição portuguesa de antes. Portugal passou por vários processos de revisão. É um processo de maturação dinâmico e contínuo. Na Guiné-Bissau foi uma espécie de pára-quedas estático. As constituições de São Tomé e Cabo Verde, que têm semelhanças, já foram objecto de revisões constitucionais.
Um regime presidencialista servia melhor a Guiné-Bissau?
Não é preciso chegar a essa dicotomia de regime semipresidencialista ou regime presidencialista, pode haver poderes e contrapoderes mais e ficazes que os que existem.
Não sendo o Presidente o chefe do Governo, tem na mão o poder de fazer cair o Governo…
Há aspectos da Constituição que dão ao Presidente poderes executivos sem serem explícitos. Por exemplo, quando se diz que é comandante supremo das Forças Armadas, num contexto como o da Guiné-Bissau, o que é que isso quer dizer? Diz que o Presidente nomeia o primeiro-ministro na base dos resultados eleitorais, mas não diz especificamente como essa base deve ser interpretada. A Constituição já nos criou suficientes problemas. Temos de a mudar.
É urgente?
É urgente fazer uma revisão constitucional, mas não antes das eleições presidenciais.
O país tem instituições fracas.
Vivemos um período de convulsões demasiado longo e o aparelho de Estado está completamente retalhado e capturado por interesses pessoais.
Quando se diz que é um Estado falhado não é um cliché?
Não gosto da expressão Estado falhado porque é um estigma. É um Estado com administração pública muito débil, mas forte militarmente.
Conosaba/publico.pt
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