Este livro veio ter comigo. Não direi “Cruzou por mim, veio
ter comigo numa rua da Baixa…” (como poderia dizer Álvaro de Campos), mas digo
que veio ter comigo através do rumo surpreendente das coisas que acontecem no mundo.
A voz de um amigo, falando de Carlos Vaz e de suas obras literárias. E dizendo
que seria bom que eu me debruçasse sobre os textos de alguém que tem história.
Alguém que atravessou mundos e situações onde a história morou e criou raízes.
E há lugares da história onde as raízes são de uma importância tremenda.
Quando o livro me chegou às mãos gostei da singeleza e
significado da capa bem como do título. Começo pelo título: Escritos no Silêncio. Sim, é sobre o
papel do silêncio que se escrevem os gritos maiores. E a tinta dos gritos
muitas vezes é da cor do sangue e, outras vezes, é da cor da revolta e/ou da fé
num mundo melhor. A foto que dá corpo ao título é a de um menino a receber um
beijo devotado de uma menina. Uma menina entregue ao seu beijo de inocência e
ternura e um menino aceitando, incrédulo, uma dádiva que pelo seu olhar deveria
ser da dimensão do mundo. Há ligações afetivas e familiares na foto em causa
que aqui não irei referir mas que tornam a foto ainda mais envolvente.
O prefácio de Escritos
no Silêncio é um prefácio com saber de experiência feito, assinado pelo Dr.
Leopoldo Amado. Palavras estruturadas e onde se encontram alguns dos fios da
obra prefaciada. E cito Leopoldo Amado: “Carlos Vaz não é, definitivamente, um
daqueles autores que dão a imagem torpe de um lorpa que apenas vê como param as
modas. Não é também, em definitivo, daquelas almas paradas, melancólicas ou
desistentes. É, pelo contrário, uma alma irrequieta…sem nunca perder a
esperança de uma Guiné-Bissau próspera”. Concordo com estas e todas as outras
palavras do prefaciador.
Em dezembro de 2016 Carlos Vaz redige o seu texto
introdutório. É um texto relativamente longo onde o autor se entrega às razões
da sua escrita e do seu pulsar interior. Aí ficamos a perceber que Escritos no Silêncio se trata de uma
coletânea que percorre algumas décadas onde a sua vibração pela história e pela
vida iconoclasta se decompõe. Na verdade, uma obra poética é sempre uma obra de
decomposição do autor. Não vou falar dos rumos históricos e das dificuldades
encontradas – quer antes da independência quer depois –, optarei por sublinhar uma
citação que Carlos Vaz nos entrega, citação de uma personalidade de referência
da política africana. Cito: “Quando os brancos chegaram, nós tínhamos as terras
e eles a Bíblia; depois eles nos ensinaram a rezar; quando abrimos os olhos,
nós tínhamos a Bíblia e eles as terras”. As palavras citadas são de
JomoKenyatta.
Escritos no Silêncio é uma viagem. Uma viagem que
representa um roteiro de vida mas que,ao mesmo tempo, representa um roteiro de
duplo significado: filosófico e poético. São as seguintes, as partes que
constituem o livro: “O despertar da poesia”; “As minhas iras em forma de
libelo”; Consciência Nacionalista”; “O Êxul”; “O Protesto” e “Liberdade, Amizade,
Paixão e Amor”. Há neste trajeto uma evidente navegação. Um andar sobre as
ondas alterosas da vida que procura o seu próprio sentido.
Carlos Vaz não para. Ele vai da sua Guiné a Portugal, ele vai
a cabo Verde e à Suécia e, depois, vai efetuando regressos e novas partidas
sempre com uma preocupação em mente: sentir a vida, o amor e a justiça.
Em Escritos no Silêncio
o autor empreende uma viagem navegante, uma viagem sobre ondas e marés
oceânicas de literatura. Uma viagem onde os sentimentos nunca se entregam mas
que anseiam um porto de abrigo. A poesia é o melhor e o mais perigoso porto de
abrigo. Nos poemas de Carlos Vaz vamos dos descobrimentos à colonização; Da
luta de libertação à primeira independência (a independência de Madina do Boé:
a única independência formal – parcial, é certo – de uma colónia portuguesa
antes do processo revolucionário acontecido em Portugal, a 25 de abril de 1974,
que gerou o processo global de descolonização. Claro que sempre no contexto de
um quadro de luta revolucionária pela libertação do jugo colonial e não
esquecendo que o Brasil já se tinha independentizado nos tempos recuados de
1822); da independência da Guiné Bissau passando pelo êxtase do exercício do
poder legítimo e confinando no novo drama da violência entre irmãos; As guerras
intestinas, algumas em surdina mas outras em dolorosa violência.
Da ausência de liberdade do mundo colonial para a ausência de
liberdade após a independência. As perseguições, os arremedos de democracia; a
corrupção e o narco tráfico, as novas perseguições. E a esperança?
Sim, a esperança está sempre na linguagem poética de Carlos
Vaz. Os versos de Escritos no Silêncio
são versos que iluminam um trajeto de esperança. Quando se revoltam, quando se
inebriam com as vitórias históricas, quando voltam a revoltar-se e quando o
erotismo e o amor tomam os sentimentos.
Ao falar de esperança Carlos Vaz fala, é claro, de liberdade.
A liberdade que só é inteira quando junta a liberdade interior com a liberdade
política e social. E a liberdade interior é a liberdade dos versos, uns a
seguir aos outros. A linguagem da liberdade é, por natureza, a linguagem dos
versos e da poesia.
O trajeto de Carlos Vaz é exemplar no magistério da
diferença. Até no seu próprio trabalho literário pois é um trabalho multigénero.
As suas peças teatrais fizeram história quando a história se escrevia na Guiné
Bissau com letras de libertação. Delas não irei falar. Hoje trata-se dos poemas
escritos entre 1973 e 2015. Entre essa estrofe que nos diz:
“…Enfim,
O poeta finge para encobrir o seu desencanto,
O que sente no seu âmago,
Para não ver as atrocidades
Que os seus olhos testemunham
Sem nada poder fazer,
Porque é a lei do mais forte que vigora.
Impotente? Sim!
O poeta finge, para acalentar a sua alma,
Acreditando que amanhã
O seu sonho de um mundo mais Humano
Será uma realidade”
E uma outra estrofe que refere, no lindíssimo poema titulado
de A Paz:
“…Sozinho, olho para a ribeira de Quinhamel,
Contemplo, a exuberante beleza natural
Que Deus nos prendou como guineenses
E sinto um tamanho sossego
E tranquilidade…
…Mas a sinfonia dos pássaros desperta-me
E apercebo-me do convidativo silêncio
Do encanto e recanto à frente da minha retina.
Deixo-me levar de novo pelo pensamento…
Se não fosse a nossa fragilidade
Em extorquir o outrem,
Não aceitar o contraditório,
Um Dia, os guineenses
Podiam brindar uma Paz duradoura.
Tira-se o exemplo,
Desta inconfundível bonança natural!”
Escritos no Silêncio é um livro de poemas que se assume
como uma espécie de antologia da obra poética de Carlos Vaz. Um livro que vem
de tempos e lugares distantes e que caminha para tempos e lugares não menos
distantes. A forma poética preferencial é a do poema longo e filosófico. O
poema que nos obriga a refletir acerca das grandes questões da vida e das sociedades.
A última parte do livro fala-nos de amor, de desejo e de sexualidade. É
precisamente onde o autor se deixa enlevar pela palavra da emoção, esquecendo a
sua dimensão filosófica. É, por isso, este livro, um livro de saudáveis
contrastes.
Ainda por cima num contexto de diálogo transversal de
culturas e de interculturalidades. Mas sempre, sempre com uma bússola ou uma
estrela polar, indicando que nunca por nunca poderá ser esquecido o que tem de
ser lembrado: as mulheres e os homens da Guiné Bissau têm uma ancestralidade imensa
e muito rica, muito anterior às influências da língua portuguesa que a história
proporcionou e, desde há mais de quinhentos anos,estabeleceram um
relacionamento que teve nessa mesma língua portuguesa um eixo incontornável e
essencial. Um eixo que caminha para as praias do futuro.
MÁRIO MÁXIMO
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