domingo, 30 de março de 2014

VASCO LOURENÇO: PORTUGAL COMBATEU CONTRA OS MOVIMENTOS DE LIBERTAÇÃO AFRICANOS DURANTE 13 ANOS


O português foi um dos militares que organizou o golpe de 25 de Abril. Na altura, a guerra colonial não tinha fim à vista. Por isso, o capitão decidiu deitar abaixo o regime em nome do prestígio das Forças Armadas.
Antes de ir para a guerra na Guiné-Bissau, em 1969, o militar português Vasco Lourenço propôs um lema para o seu batalhão: "contrariados, mas vamos". Porém, o lema não foi aprovado.

Portugal combateu contra os movimentos de libertação africanos durante 13 anos. À semelhança do que acontecera na Índia portuguesa, o regime ditatorial parecia lutar teimosamente contra o inevitável – a concessão dos territórios no chamado Ultramar.

Muitos militares começam a conspirar, Vasco Lourenço era um deles. Para o então capitão, a solução para o conflito colonial só podia ser política. Mas, em 1973, o Governo português publicou um decreto que facilitava o acesso aos quadros permanentes das Forças Armadas, antevendo assim a continuação do esforço de guerra. Foi o princípio do fim.

Vasco Lourenço insurgiu-se contra o decreto. Começou a conspirar contra a ditadura fascista e convenceu os colegas de que era necessário recuperar o prestígio das Forças Armadas junto da população, que associava os militares ao regime ditatorial. Segundo Vasco Lourenço, só havia uma forma de fazer isso: derrubar o Governo.

DW África: Houve algum episódio que o tenha marcado particularmente quando combateu na Guiné-Bissau?

Vasco Lourenço (VL): Houve uma situação que alterou radicalmente a minha maneira de estar perante a guerra e perante o próprio país. Em determinado momento, descobri uma rede de informações no seio da população e de elementos de milícias guineenses que lutavam comigo em operações militares.

Descobri que não havia nenhuma operação que fizéssemos em que eles não enviassem alguém ao Senegal, do outro lado da fronteira, a informar sobre o que íamos fazer. E descobri que o chefe dessa rede de informações, um milícia chamado Bori, tinha morrido numa emboscada, mesmo ao meu lado, cerca de quinze dias antes de eu descobrir a rede.
Isso chocou-me profundamente. Dei por mim a questionar-me e a pensar: "Que raio de guerra é esta em que um indivíduo acaba por ser morto pelos próprios companheiros? E aí, depois de alguma discussão com os meus alferes e furriéis sobre estes pontos de vista, cheguei à conclusão que quem estava certo eram eles, que estavam a lutar pela independência e pela liberdade.
Eu é que estava errado e estava ali a mais. É evidente que esta perceção não caiu do céu, já se vinha formando há bastante tempo. Mas é aí que se dá o clique e percebo que, de facto, a guerra é injusta e ilegítima. E que não posso participar mais naquela guerra.

DW África: Temia-se na Guiné-Bissau uma segunda Índia?

VL: Era diferente. Na Índia, era absolutamente utópico pensar em resistir naquelas condições à invasão que a União Indiana fez. Portanto, houve a derrota militar. Depois, houve a atitude miserável do Governo, que atacou os militares como bode expiatório do que se tinha passado.

Na Guiné-Bissau era diferente. Essa derrota militar não se daria como se deu na Índia, porque, em termos militares, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) não tinha forças para derrotar daquela maneira as forças portuguesas.

Os guineenses tinham zonas que controlavam bastante bem e a que nós tínhamos imensa dificuldade em chegar, principalmente a partir do momento em que perdemos o apoio da Força Aérea. Mas eles também não conseguiam desalojar-nos da generalidade dos sítios onde estávamos. Portanto, a guerra, em termos militares, poder-se-ia ter prolongado bastante. Não, o problema era político.

DW África: E era uma teimosia…

VL: Era a política. Repare, nunca as Forças Armadas declararam a guerra em qualquer sítio do mundo. Quem declara a guerra são os políticos.

Portugal estava surdo, cego e mudo aos ventos da História. Achavam que estávamos orgulhosamente sós. Sós, mas orgulhosamente. Andávamos a defender os valores que eles achavam ser os valores da civilização cristã e ocidental. Estávamos sozinhos, porque éramos nós que determinávamos quais eram esses valores e assumíamo-nos, isolados, como os seus defensores.
A generalidade dos países ditos nossos aliados apoiava os nossos adversários, direta ou indiretamente. O próprio Papa [Paulo VI] recebeu os líderes dos movimentos de libertação. Portanto, a questão era essencialmente política. É isso, aliás, que está na origem do 25 de Abril.

DW África: Recorda-se de algum episódio que espelhe as dificuldades de organizar o golpe de Estado?

VL: Eu posso-lhe contar vários. Mas há um que mostra como tínhamos de ir tateando… Numa reunião clandestina [em dezembro de 1973], há um major de Cavalaria que se levanta e diz: "Eu ouvi aqui falar em direito à autodeterminação e independência… Mas isso é traição! Eu estou aqui a mais." Ficámos todos a olhar: "O que é isto? De onde caiu este pássaro?" Ele percebeu a situação dramática em que estava e, até pelas características dele, um homem extraordinariamente conservador, mas honesto de princípio, diz: "Eu dou a minha palavra de honra. Vou-me embora mas não conto nada do que aqui se passou".

Eu, que estava a moderar a reunião, olhei rapidamente para a malta e digo: "Podes ir embora, mas lembra-te da promessa que acabaste de fazer. Se abrires a boca, qualquer dia chocas aí com uma coisa fria ou com uma coisa quente sem saberes de onde vem. Vê lá o que é que vais fazer." Ele responde: "Não, eu dou a minha palavra de honra que não digo nada".

Isto mostra, de facto, as dificuldades que nós tivemos. Vamos discutindo a necessidade de um programa político…
Temos a noção de que, quando fizermos um golpe de Estado, temos que apresentar um programa político, porque senão era só mudar as moscas e o resto ficava na mesma. Depois, escolhemos os generais Costa Gomes e Spínola para os convidar para liderarem o movimento – na condição de aceitarem o programa político que aprovámos – e, a seguir, dá-se o voto de confiança à comissão coordenadora e à direção (o Vítor Alves, o Otelo e eu próprio) para levarem à prática estas decisões.

Depois, sou posto fora do circuito, com uma situação rocambolesca, porque sou "raptado" pelos meus camaradas para demonstrarem que eu até queria ir, eles é que não me deixavam. Depois estive preso. Mas, de facto, é extraordinariamente complicado.

DW África: O que previa o programa político do Movimento dos Capitães no capítulo da descolonização?

VL: Direito à autodeterminação e independência. Isso depois é alterado no dia 25 de Abril à noite por pressão do general Spínola. É uma das falhas que o processo teve e que vem a ter consequências dramáticas para Portugal e para os portugueses.

Porque quando o programa é difundido e a nossa posição favorável à autodeterminação e independência dos povos, que tinha sido discutida com o próprio general Spínola, foi substituída por qualquer coisa do estilo "continuação de uma política ultramarina que leve à paz", muito "soft", os movimentos de libertação recrudesceram no esforço de guerra. E, entre o 25 de Abril e o fim da guerra, nós portugueses sofremos mais de 400 mortes.

DW África: Foi preso a 9 de março de 1974 e estava nos Açores quando foi o 25 de Abril. Como recebeu a notícia?

VL: Tinha combinado com o Otelo o envio de um telegrama em código para a sogra do Melo Antunes. Precisamente para despistar. E, no dia 24, foi recebido um telegrama com o código que eu tinha mandado ao Otelo "Tia Aurora segue Estados Unidos da América 25.0300. Um abraço, primo António".
Eu tinha-lhe mandado um texto que era "Tia Aurora segue". Depois, ele teria de pôr o local para onde seguiria um avião na data/hora que ele depois colocaria. "Um abraço, primo António", eu tinha posto. Portanto, o que ele preencheu foi só "Estados Unidos da América 25.0300", que era dia 25 às três da manhã.

DW África: O 25 de Abril correspondeu às suas expectativas?

VL: Dir-lhe-ei que sou otimista. Em termos militares, correspondeu. A minha reação imediata quando ouvi "Aqui Posto de Comando" no Rádio Clube Português [o anúncio dos militares revolucionários, que acabavam de assumir o controlo da rádio] foi "ganhámos!". Estava convencido que íamos ganhar.

Além disso, a reação de apoio que tivemos foi incomensuravelmente maior do que aquela de que estávamos à espera, o que nos influenciou decisivamente. Depois, na sua generalidade, as consequências corresponderam ao que eu ambicionava: a solução para a guerra colonial, o direito dos povos à autodeterminação e independência, e, em Portugal, a instalação de uma democracia política, a criação de uma sociedade muito mais justa, mais desenvolvida e o sair do isolamento internacional em que nós estávamos. Infelizmente, isso hoje está tudo a perder-se.

DW África: Ao olhar para o Portugal de hoje, foi esta a democracia que queria quando organizou o golpe de Estado?

VL: A de hoje não. Hoje somos um protectorado, um país ocupado por forças estrangeiras – pela Alemanha principalmente.

Depois, somos um país que foi assaltado por elementos que ocuparam o poder que se mostram como herdeiros dos elementos que foram vencidos no 25 de Abril e atuam como estando a querer vingar-se do que aconteceu no 25 de Abril. Estão a destruir tudo o que podem destruir que cheire a 25 de Abril. Estão a fazê-lo como capatazes das forças estrangeiras. Tem que ver com a situação internacional que se vive, onde o poder financeiro assume, de facto, o domínio da situação e está a destruir por completo tudo aquilo que foi alcançado pela luta dos cidadãos de todo o mundo nestes últimos 200 anos.

Hoje, em Portugal, temos a democracia formal, mas isso não chega. A Justiça não funciona. Todos os avanços que se deram na saúde, educação, segurança social estão a desaparecer. E, por isso mesmo, este não era de maneira nenhuma o país que eu ambicionava quando arranquei para o 25 de Abril.

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